Quanto livre-arbítrio tem a pequena Mylle quando ela “decide” ser escritora em um mundo em que tudo o que ela precisa para sê-lo já foi inventado?
O hábito da leitura, entre tantas qualidades, tem o poder de nos tornar mais conscientes de nós mesmos em relação ao mundo. Ler é aceitar que não somos autênticos em essência, mas sim influenciados, em maior ou menor escala, pelo mundo no qual nascemos. Ao dizer isso, quero passar longe do determinismo — a crença de que cada pessoa é fruto do meio em que vive — e apenas afirmar que parte das nossas “escolhas” só são possíveis porque nascemos na época em que nascemos.
Como mencionei em outra ocasião, só posso afirmar que “nasci escritora” porque, quando nasci, a escrita e o livro já haviam sido inventados e amplamente difundidos; porque o sistema educacional brasileiro foi instaurado e porque fui alfabetizada na infância. Estes e outros pontos fixos na minha história pessoal, que me definem como escritora — identidade que, até pouco tempo, acreditava ser uma escolha minha — são parte de um emaranhado de decisões feitas por toda a humanidade anterior a mim.
É óbvio que a escrita, o livro e tudo mais que existe foi inventado por alguém, em algum momento. No entanto, refletir que houve uma época em que essas convenções e objetos cotidianos (e até desvalorizados hoje) não existiram, me fez ver que meu sentido de significado no mundo, até então firme, é frágil como tudo mais.
(Ironia: eu só pude concluir isso lendo um livro)
O mundo da escrita, do professor de literatura Martin Puchner, foi a quinta escolha de leitura numa terça-feira fria. Eu estava irritada, lendo e desistindo de cada um dos livros que abria no meu Kindle, até encontrar o texto que me envolveria ao longo das semanas, comprado dois anos antes e esquecido nas nuvens digitais.
A história da escrita não foi registrada por aqueles que a inventaram. Na verdade, essa é uma história dispersa, um quebra-cabeças de civilizações perdidas, argilas queimadas e uma multidão de anônimos que criaram os sistemas que hoje usamos. Ainda hoje existem textos antigos nunca decifrados e lacunas sobre como certas obras se tornaram o que conhecemos hoje — como é o caso de As mil e uma noites.
Por onde passou (como toda nova tecnologia), a escrita sofreu resistência. Se hoje enxergamos os livros como um registro dos pensamentos de quem os escreveu, nos primórdios da escrita registrar o pensamento humano ia contra crenças de várias culturas.
Com a cultura oral sendo a principal forma de transmitir conhecimento, histórias e ideias deveriam ser passadas através do bom e velho (literalmente) boca-a-boca. Escrever as informações não só significava que as pessoas deixariam de decorá-las e memoriza-las como também aumentaria o volume do conhecimento com o qual a humanidade teria que lidar.
Dito assim, o argumento é quase igual ao usado em oposição à produção massiva de informações na internet — em especial, nas redes sociais. Isso só prova o óbvio: que a comunicação através do ambiente digital nada mais é do que uma revolução tão grande quanto a invenção da escrita.
Mas voltemos ao meu sonho. A neurociência já provou há algum tempo — e aqui cito o psicólogo Daniel Goleman e sua pesquisa sobre a Inteligência Emocional — que o que chamamos de “intuição” nada mais é do que um cálculo bioquímico baseado nas experiências individuais de cada um de nós. À medida que adquirimos novas experiências, tais cálculos se tornam mais precisos e imediatos — para bem e para mal. De tanto serem repetidos, alguns desses cálculos se tornam padrões e são acionados sem que os percebamos.
Assim, nada sobre ter livre-arbítrio para ser escritora é verdadeiro. Fiz dois cálculos bioquímicos: aos oito anos, me mostraram palavras e eu disse “quero escrever”; aos onze, mostraram-me uma biblioteca e eu disse “quero ser”. O resto da história é apenas uma série de padrões que venho repetindo desde então.
Entre dizer “eu escolho” e “eu quero” há uma grande diferença. Afirmar uma escolha nos dá a ilusão de controle, de que selecionamos algo especial em detrimento do resto. No entanto querer é admitir que desejamos algo que nos foi apresentado, que queremos aquilo para nós. Enquanto escolher é envolto em mistério mágico; querer é um cálculo mundano.
Ou seja, eu quis ser escritora, eu quis publicar livros e aqui estou. Por mais simplórias que sejam, certas definições são essenciais para nos manter motivados — assunto para um próximo momento.
Ler sobre o passado, principalmente um passado que desmembre pontos que consideramos fixos da nossa história pessoal, é um esvaziamento para o ego. Arrebatados pela noção de que somos apenas mais um pedacinho da coisa toda, lembramos que sempre estaremos andando sobre os ombros de gigantes, não importa o que façamos.