História. Da área de conhecimento às técnicas de narrativas, as histórias são parte integrante da nossa existência. Nos digladiamos com linhas do tempo (pessoais e impessoais; próximas e distantes) em busca de algum sentido pra essa porra toda.
A História é de todo mundo, mas não é uma só. Assumir há uma única versão da História a ponto de bloquear qualquer outra é como uma fratura no ser social, que pode aliená-lo a ponto de cometer atos como os que vimos no dia 08 de janeiro.
Cada uma das pessoas que participaram da tentativa de golpe, quer concordemos ou não, tinham uma história. E, apesar de simplório, pensar nisso os humaniza e os enche de contradições, como em qualquer situação em que nos imaginamos frente a frente com um criminoso e nos perguntamos: como ele foi capaz de fazer isso?
Por isso, não podemos, ao analisar o caso, assumir que eles têm uma história única. Mesmo que nos vídeos eles pareçam uma massa ensandecida, cada um participou do ato por algum motivo em particular.
A questão é que, como ocorre no esquema de pirâmide mais simples, um grupo de articuladores tirou proveito desses motivos particulares para levar quatro mil pessoas para destruir um pedaço da História Nacional.
Até aqui, nada de novo no front. O fato é que a destruição recente é apenas mais uma entre as tantas vezes que a nossa jovem História foi retirada de nós.
Para fins dessa Cisma, escolhi comparar três eventos recentes que derreteram parte da nossa História. São eles:
- A destruição no ato golpista de 08 de janeiro;
- O incêndio na Cinemateca Brasileira;
- O incêndio no Museu Nacional.
Vamos refrescar a memória em ordem cronológica.
Primeira destruição histórica: incêndio no Museu Nacional
No dia 02 de setembro de 2018, o fogo consumiu 85% dos 20 milhões de itens pertencentes ao acervo do Museu Nacional, e também a fachada do prédio histórico que o abriga, na cidade do Rio de Janeiro.
Entre as peças de maior valor histórico, estavam artefatos únicos de tribos ameríndias, que comprovavam a sua existência, e fósseis, como o mais antigo fóssil humano já encontrado no Brasil e de tiranossauros que foram encontrados apenas no território brasileiro.
À época, em entrevista para a BBC, o diretor do museu, Alexandre Kellner, disse que o que se perdeu para a cultura humana com o incêndio no Museu Nacional foi muito maior do que o que se perdeu no incêndio na Catedral de Notre-Dame.
Sem água nos hidrantes do jardim, o incêndio só começou a ser controlado 40 minutos depois, quando um caminhão pipa finalmente chegou ao local.
Em 2020, a Polícia Federal encerrou as investigações e concluiu que o incêndio não foi criminoso — ao menos, não diretamente. O incêndio foi iniciado, pelo que consta, devido a um curto-circuito em um ar-condicionado precisando de manutenção.
Apesar de ter um contrato assinado, ainda em 2018, com o BNDES para realizar a revitalização do museu, a verba não foi liberada.
Mais de quatro anos se passaram, e apenas o jardim e a fachada do prédio histórico foram inaugurados. Com investimentos a passos lentos, dependência de doações e os percalços da pandemia, foram necessários três anos só para retirar os escombros do incêndio.
Até setembro de 2022, foram gastos R$254 milhões na recuperação do espaço. A previsão é que o Museu Nacional seja completamente reaberto apenas em 2027.
Segunda destruição histórica: incêndio na Cinemateca Brasileira
Como se não bastasse um, tivemos outro fogo consumindo parte da nossa História. No dia 29 de julho de 2021, 4 toneladas de documentos sobre a história do cinema no Brasil, equipamentos guardados como relíquias para um novo museu e parte do acervo de Glauber Rocha foram perdidos no incêndio que destruiu um dos galpões da Cinemateca Brasileira.
O episódio foi tido como uma tragédia anunciada, e foi o último de uma trinca de desgraças que assolaram a Cinemateca nos últimos anos. Antes do incêndio, a Cinemateca tinha sido atingida por uma inundação, e antes da inundação, por um incêndio.
Oficialmente abandonada pelo governo, a Cinemateca Brasileira estava sem uma instituição gestora desde 31 de dezembro de 2019, e era mantida de forma improvisada, por uma equipe técnica sem salários.
Sete meses depois, todos os funcionários (esses mesmo, que já não estavam recebendo nada) foram mandados embora e, sem uma equipe técnica especializada para fazer a manutenção do local, o Ministério Público Federal entrou na justiça contra a União pelo abandono da Cinemateca Brasileira.
A culpa pelo incêndio da quinta maior cinemateca do mundo foi, mais uma vez, do ar-condicionado.
Terceira destruição histórica: tentativa de golpe de 08 de janeiro
Depois de dois incêndios, foi a vez de uma horda de terroristas invadir os prédios dos três poderes (Congresso Nacional, STF e Palácio do Planalto) numa tentativa de golpe de estado.
Classificada como terrorista, a ação foi comprovadamente premeditada e desestabilizou qualquer pessoa sensata que estava aproveitando uma tarde tranquila de domingo.
Mais uma vez, ouvimos o termo tragédia anunciada, e mais uma vez nos espantamos com as inúmeras chances perdidas que a polícia, o secretário e o governador de Brasília tiveram de evitar o ocorrido.
Mas, seguindo o clichê, não dá pra chorar pelo leite derramado. O fato é que a horda terrorista deixou para trás uma destruição, tanto material quanto simbólica, que mesmo dez dias depois do ocorrido, ainda estamos tentando dimensionar.
Por enquanto, o que podemos dimensionar é a destruição material. No final da tarde do dia 12 de janeiro, o Iphan publicou o relatório preliminar de vistoria de bens culturais afetados por vandalismo na praça dos Três Poderes.
No relatório, que você pode acessar aqui, há um descritivo do que foi depredado, os valores que podem ser aportados para a recuperação de bens tombados como patrimônio mundial, o levantamento da equipe disponível para a realização do restauro e as fotos das depredações.
Dentre as muitas fotos de vidros quebrados e chãos riscados, vemos o estado em que as obras de arte foram encontradas e quais delas são irrecuperáveis.
Calcula-se que, só das obras de arte, o prejuízo causado pelos terroristas tenha sido de 17 milhões — e parte desse valor está, como mostra o relatório, foi perdido para sempre.
Três tragédias que poderiam ter sido evitadas
A pergunta que fica é de por que as tragédias anunciadas não foram evitadas. No centro dos três casos que arrancaram parte da nossa história de nós está o descaso por parte do poder público que poderia ter agido para fazer o trabalho para o qual foi eleito ou indicado: proteger o patrimônio público.
A repetição de tragédias relacionadas aos bens históricos mostra que o descaso é estrutural e independente de governo. Podemos buscar explicações diversas, como questões sociais, econômicas, culturais, mas o fato é que a pouca História que reunimos está se perdendo — e, com ela, estamos perdendo a nossa ainda frágil identidade brasileira.
Sem saber quem somos, não iremos muito longe e estaremos fadados a continuar admirando símbolos, costumes e expressões artísticas de outros países, na esperança de que a identidade de algum deles cole em nós.