Jean-François Lyotard, em seu livro O Inumano, aborda questões essenciais sobre a arte, a estética e a condição humana na era contemporânea. Neste texto, exploraremos algumas das principais concepções apresentadas por Lyotard nesta obra.
Para começar, precisamos verificar os usos do termo “inumano” de acordo com o autor. Para Lyotard, o “inumado” é algo que transcende a essência da humanidade, que confronta as limitações impostas pela racionalidade e pela cultura humanista.
Para o autor, as tecnologias e as ciências modernas são forças que podem transformar a natureza do ser humano de maneiras que muitas vezes escapam ao nosso controle ou compreensão, introduzindo um tempo “não humano” que é imposto pela aceleração tecnológica e pela lógica do capital, transformando nossa experiência temporal.
Em suas reflexões, Lyotard crítica a modernidade e suas promessas de progresso e emancipação, apresentando o “inumano” como um colapso dessas promessas e evidenciando a fragilidade das narrativas de progresso contínuo.
Outra relação do “inumano” é para com a arte e a estética, especialmente no contexto do sublime. Através da arte, o “inumano” se manifesta ao confrontar os limites da representação e da percepção humana, provocando experiências que transcendem a compreensão e revelam aspectos inefáveis e incompreensíveis da existência.
Lyotard, portanto, utiliza o conceito de “inumano” para questionar a visão humanista, propondo uma nova forma de pensamento que reconheça e incorpore as complexidades do mundo contemporâneo.
O Inumano e a Arte
Segundo o autor, o sublime é uma experiência que transcende a capacidade de representação direta, evocando uma profundidade impossível de ser completamente capturada.
Na arte de vanguarda, o sublime se manifesta através da rejeição das técnicas convencionais de manipulação do espaço e da imagem, desafiando as percepções tradicionais e abrindo caminho para novas formas de expressão artística. Mas, o que é manipulação do espaço e da imagem?
De forma resumida, refere-se ao uso de diversas técnicas e abordagens para organizar e representar elementos visuais em uma composição. Essas manipulações são utilizadas para criar profundidade, realismo e equilíbrio visual, permitindo que o espectador perceba a obra de arte de maneiras específicas e intencionadas pelo artista.
Por exemplo, “A Escola de Atenas” (1509-1511) de Rafael Sanzio exemplifica perfeitamente a utilização da perspectiva linear para criar profundidade e um senso de espaço tridimensional.
Para Lyotard, as obras de vanguarda subvertem essas expectativas e as percepções habituais dos espectadores, abrindo caminho para novas experiências.
De acordo com Lyotard, as obras de vanguarda, ao questionarem a estética tradicional do belo, realizam uma tarefa ontológica, ou seja, refletem sobre a essência da arte.
A estética do sublime, adotada por essas obras, provoca uma resposta emocional complexa, forçando os espectadores a confrontar os limites de seus sentidos e compreensão. Em outras palavras, para o autor, as obras que evocam o sublime desorientam o espectador, desafiando suas expectativas e percepções habituais.
Esse efeito leva os espectadores a novas experiências que transcendem o ordinário, mostrando o invisível no visível, que significa revelar aspectos “ocultos ou profundos” das situações que não são imediatamente aparentes, provocando uma reflexão crítica sobre o que constitui a arte e como ela deve ser apreciada.
Arte como Mercadoria e a Crítica ao Mercado de Arte
Outro aspecto abordado por Lyotard é a mercantilização da arte. Para o autor, as obras são frequentemente valorizadas por sua capacidade de serem comercializadas, em vez de seu significado substancial, reduzindo a arte a uma commodity, distanciando-a de seu potencial para explorar e expressar o sublime.
Lyotard aponta que a crescente mercantilização da arte é um reflexo da hegemonia dos princípios empresariais, mercantis e financeiros, onde o valor estético das obras é frequentemente ofuscado pelo seu valor monetário. Com a predominância do mercado, a arte torna-se um “evento de mercado” mais do que uma expressão genuína de ideias ou emoções.
É nesse sentido que, para Lyotard, a mercantilização não apenas altera a percepção da arte, mas também transforma a própria natureza do que é considerado arte. Ao ser integrada aos mecanismos de especulação financeira, a arte passa a ser vista como um investimento, onde o preço das obras é mais importante que seu conteúdo artístico.
Essa transformação está alinhada com o conceito de “capitalismo artístico”, onde a criatividade e a originalidade são canalizadas pelas lógicas de mercado, que levam à hibridização entre a arte e os negócios.
A crítica de Lyotard também se estende à espetacularização da arte, onde o destaque dado aos altos preços pagos por obras de arte contribui para a percepção de que o valor financeiro é a marca definitiva de sua qualidade.
Artistas contemporâneos são mais célebres pelos preços exorbitantes de suas obras do que pelo conteúdo artístico em si, o que, por sua vez, demonstra como a lógica econômica do capitalismo pode redefinir os critérios de apreciação e qualificação da arte.
Reconfiguração da Estética Pós-Sublime
Após o sublime, de acordo com Lyotard, ocorre uma reconfiguração significativa da estética, e a arte se volta para questões mais fundamentais sobre sua própria natureza e propósito.
A mudança de foco da arte “após o sublime” para a matéria é uma abordagem que vê a matéria como uma presença que existe fora das expectativas e funções convencionais, numa tentativa de capturar ou representar o sublime, promovendo uma experiência mais direta, ou seja, sem mediação.
Lyotard afirma que, com a transição para o “pós-sublime”, a arte começa a abordar questões de ontologia, refletindo sobre a essência do ser e do existir. A matéria torna-se um elemento central, não apenas como um meio, mas como algo que possui uma presença própria e uma capacidade de provocar respostas emocionais e intelectuais.
Entretanto, as experiências do sublime têm implicações éticas, reconfigurando as relações entre arte, espectador e sociedade. As novas formas de engajamento transcendem o prazer estético convencional e abordam questões de responsabilidade e significado.
A relação entre o artista, a obra e o espectador é mediada por uma responsabilidade de confrontar e representar realidades que muitas vezes escapam à compreensão plena, reforçando a necessidade de uma reflexão contínua sobre o papel da arte na sociedade contemporânea.
O sublime, ao evocar um encontro com o “outro” — algo totalmente fora do nosso entendimento usual —, reconfigura nossa compreensão do mundo e de nós mesmos. Esse encontro com o outro não é apenas uma experiência estética, mas uma confrontação com a alteridade.
Para Lyotard, o “sublime moderno”, caracterizado pela ausência e pela evocação do irrepresentável, difere do “sublime pós-moderno”, que celebra a inovação e a criação de novas formas artísticas.
O pós-modernismo, segundo Lyotard, é uma continuação que redefine as regras tradicionais da arte. O artista pós-moderno é comparado a um filósofo, que investiga e reinventa as estruturas dentro das quais trabalha.
A estética “pós-sublime”, assim, não busca “apenas” representar o belo ou o agradável, mas provocar uma experiência que transcende o ordinário, revelando a profundidade e a complexidade da experiência humana frente ao inefável e ao irrepresentável.