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O passado não é mais como era antigamente

Ei, você! Sim, é com você que eu tô falando… Do mais absoluto nada, não importando quão ocupada você esteja agora, toma aqui essa lembrança de X anos atrás. Gostou? Não, não precisa agradecer… Achei que você fosse gostar dessa memória aleatória: você e algumas amigas no topo do pico Paraná. Já tinha esquecido, né? Não esquenta, essa é minha função, quinta que vem tem mais lembranças, ok? Ah, não gostou dessa? Então escolha: uma tarde na Praia do Rosa (esse dia foi louco!), o canudo para o alto na colação de grau, um show na Pedreira (de que banda mesmo?), o centenário da bisa, uma foto do prato de ceviche em algum restaurante de Lima. Bora compartilhar?

A memória humana tem duas funções: armazenamento e recordação de lembranças. Para recordar, como se sabe, é necessária uma boa dose de ficção (imaginação) no processo, o que faz da memória a mola propulsora da criatividade humana. Até aí, tudo bem. E se eu disser que, com o avanço tecnológico e com a globalização estamos terceirizando e modificando as características primordiais da memória humana? Mais: neste cenário, o armazenamento obtém prioridade em relação à recordação, e lembranças antigas são reapresentadas constantemente como se fossem atuais, partes do presente, sazonalmente revisitadas.

Para onde o armazenamento excessivo de lembranças nos trouxe? Eu, que apenas especulo, não sei a resposta. Mas fique tranquilo, se você também não sabe, podemos procurar no google. Fica combinado que a tecnologia preservará espaço em nossas memórias para o que realmente importa — enquanto nos disponibiliza candidamente contatos telefônicos, datas comemorativas, informações atualizadas, cálculos básicos, rotas e caminhos, citações descontextualizadas e toda sorte de lembranças cotidianas e corriqueiras. Dessa forma, sobrará mais espaço disponível em nossas cabeças para decorar diversas senhas e  memorizar logomarcas.

É essa a noção de efêmero duradouro, delineada pela pesquisadora Wendy Chun: lembranças que até bem pouco tempo seriam perdidas, descartadas pela ação natural do cérebro, são agora recuperadas e disponibilizadas a qualquer momento (aos usuários ou aos logaritmos, que atuam como hipocampos externos). Em uma realidade na qual a perda de qualquer dado é dificultada, o efêmero se torna permanente e perdura no tempo.

Combo do dia: McMadeleine infeliz!

Armazenar não significa lembrar. Giselle Beiguelman, professora e pesquisadora da FAUUSP, sintetizou de maneira certeira a falsa impressão que temos a respeito da memória: a internet jamais esquece, mas a cultura digital não nos deixa lembrar. O acesso imediato ao passado produz a modulação de nossas memórias. E (desculpe problematizar) a globalização de nossas referências também opera de maneira a homogeneizar as, por assim dizer, lembranças futuras. Crianças com bonecos do Batman ou da Barbie, reunidas com a família em uma famosa rede de fast-food, enquanto assistem coreografias repetitivas na tela de um celular: a (in)feliz cena poderia ser em Curitiba, Los Angele, Budapeste, ou em qualquer cidade perto de você.

Tudo somado, temos a redução cada vez mais significativa dos estímulos mnemônicos.

Sim, as implicações são muitas e vão bem além da minha vã compreensão e domínio. Minha reflexão se resume, como quase sempre, a especular cenários. Sabe o que ainda não apareceu no texto, mas que tem tudo a ver com memória? A sinestesia. Ou a epifania. Ou até mesmo a nostalgia. Palavrinhas que, para além de rimar, combinam também pelo caráter de imprevisibilidade (ou impermanência) que sintetizam. E todas elas são disparadas pelo gatilho da lembrança. Das lembranças escondidas!

Está lá no Caminho de Swann, o primeiro volume do imprescindível Em busca do tempo perdido, de Proust. Logo nas primeiras páginas, o narrador-personagem mergulha um trivial bolinho (madeleine) em uma xícara de chá e depois o leva à boca — e temos uma das mais poderosas digressões da literatura em todos os tempos. A epifania de Marcel, que conduz o leitor pelos caminhos da lembrança revisitada, retroagindo à infância e coletando pistas sobre o personagem, só é possível devido à memória afetiva, esse intrincado mecanismo que conjuga experiências sensoriais aos traços de personalidade ou às bases de quem somos. Quem não se lembra do crítico gastronômico ferrenho do filme Rattatouille esmorecendo ao paladar prosaico e epifânico do prato que lhe foi servido na animação da Pixar?

Pergunta capciosa: se somos constantemente lembrados de tudo, se os desenhos e brinquedos e músicas e comidas da infância tendem a se tornar os mesmos, de que maneira nos diferenciaremos no futuro?

Tem bastante tempo agora

Foi em 2016 que a União Europeia determinou que o Google respeitasse o direito de ser esquecido – quando usuários solicitam que informações a seu respeito sejam apagadas da rede. O direito ainda não é aplicado no mundo todo, e nem é fácil de ser aplicado na prática, mas é um marco. A evolução da tecnologia e a aparente inevitabilidade da globalização podem fazer parecer que não há limites, especialmente quando o assunto é internet. Até aquele seu tio já sabe que toda quinta-feira é dia de recordar coisas aleatórias, não é mesmo? #ThrowBackThursday! (ou #tbt, para os íntimos). Pois bem, aqui vai uma afirmação: a capacidade de esquecer é que nos torna humanos — muito mais do que a de lembrar. Já dá pra escolher a segunda-feira como o dia do esquecimento nas redes? #EraseBackMonday

No conto Funes, o memorioso, presente no livro Ficções, de Borges, somos apresentados a Ireneo Funes, que dispõe de uma memória inigualável: não apenas se recordava de cada folha de cada árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. A capacidade sobre-humana, longe de ser uma dádiva, representa para Funes uma maldição, tornando-o espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso. Para que a vida aconteça, podemos concluir, é preciso que a memória a deixe acontecer.

Por fim, há outras formas de exercitar a memória. Decore um poema, como me sugeriu uma amiga poeta, que completou: parece difícil a princípio, mas é só treinar. Certa vez, perguntei a um colega quando ele havia pedido a mão de sua esposa em casamento. Sem titubear me respondeu: não me recordo o dia exato, mas lembro que ela estava com uma blusa vermelha, os cabelos desalinhados na frente do rosto e que o sol estava atrás de mim, no céu, porque ela estava com as pálpebras semicerradas quando me disse sim.

Felizmente, acrescentou esse meu colega, não há nenhum registro do momento para desmenti-lo.


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