Milton Santos (1926–2001) é amplamente reconhecido como um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX e um dos principais renovadores da geografia no Brasil durante a década de 1970.
Apesar de sua formação em Direito, Santos construiu uma carreira notável na geografia, destacando-se por seus estudos sobre a urbanização nos países do Sul Global e, posteriormente, por suas análises críticas da globalização na década de 1990.
Sua produção acadêmica foi marcada por uma postura crítica ao sistema capitalista, questionando os pressupostos teóricos predominantes na geografia de sua época. Milton Santos desenvolveu uma abordagem que interliga economia, política, sociedade e espaço, com um olhar particular para as desigualdades estruturais e as dinâmicas sociais que definem as relações urbanas.
No capítulo Pode-se definir a “pobreza”? do livro Pobreza Urbana (Coleção Milton Santos, 16 – Edusp, 2009), o autor discute as dificuldades teóricas e metodológicas de se definir e compreender a pobreza, especialmente nos países do Sul Global.
“O problema da pobreza ganhou, em nossos dias, uma atualidade incontestável por duas grandes razões: em parte pela generalidade do fenômeno que atinge a todos os países, embora em particular aflija mais duramente os países subdesenvolvidos, mas também pelo fato de que a urbanização galopante que estes últimos conhecem é acompanhada pela expansão, a um ritmo igual, da expansão da pobreza, mesmo que esta se apresente de forma particular e específica em cada país e nas diferentes cidades de um mesmo país” (p.6).
Para o autor, embora a pobreza seja um fenômeno global, ela não pode ser compreendida de forma homogênea, observando que “a pobreza existe em toda parte, mas sua definição é relativa a uma determinada sociedade”. Esse caráter relativo implica que as condições materiais e culturais de cada contexto moldam tanto a percepção quanto as consequências da pobreza.
Sendo assim, as “dificuldades e ciladas” no estudo da pobreza não são apenas de ordem prática, mas também teórica. Milton Santos critica os esforços que tentam definir a pobreza sem levar em conta suas características dinâmicas e historicamente determinadas. Para ele, tais esforços ignoram os processos que conectam a pobreza a fatores estruturais, como a urbanização acelerada, a exclusão social e as disparidades econômicas globais.
Isto ocorre porque, nos países Sul Global, os instrumentos de pesquisa frequentemente adotados são inadequados, já que seguem “modelos internacionais” desenvolvidos para realidades distintas, como a Europa ou os Estados Unidos. Essa transferência acrítica de métodos e conceitos gera, segundo o autor, uma visão distorcida e reducionista da pobreza nesses contextos.
“As estatísticas dependem de uma compreensão sistemática, do mecanismo dos fenômenos que se quer estudar. Há necessidade, portanto, de categorias analíticas que permitam a obtenção de dados e também a correção dos não confiáveis, o que ajudará na escolha das pesquisas complementares necessárias” (p.14).
A falência das estatísticas
Ao discutir as limitações das estatísticas na análise da pobreza, o geógrafo aprofunda-se na crítica ao uso acrítico de dados quantitativos, apontando que eles muitas vezes reproduzem visões distorcidas das realidades dos países do Sul Global. Sendo assim, as estatísticas existentes, além de inadequadas ou insuficientes, frequentemente falham em capturar as especificidades locais devido a sua dependência de teorias e conceitos importados.
O autor destaca que, em muitos casos, os instrumentos de coleta de dados são ajustados para atender interesses políticos ou para justificar políticas públicas específicas. Por exemplo, Santos cita que as estatísticas podem ser manipuladas “sob o pretexto de ajustá-las às condições locais ou até mesmo com finalidades abertamente políticas” (Santos, 2009, p.13 citando Feder, 1973, p.5-6). Essa manipulação cria um cenário em que os dados deixam de ser representativos das condições reais e servem para perpetuar preconceitos ou omitir problemas estruturais.
“As estatísticas só expressam a realidade quando recolhidas através de uma teoria válida; estatísticas e teoria se completam” (p. 14).
Nosso autor chama atenção para a heterogeneidade e fragmentação das informações disponíveis, mencionando que, devido a diferenças metodológicas e aos critérios arbitrários usados para delimitar áreas urbanas ou setores econômicos, torna-se extremamente difícil realizar comparações confiáveis entre regiões ou países.
“Os critérios sobre o que é ‘urbano’, quase tão numerosos quanto os países a que se referem, são tão diversos que não permitem nenhuma tentativa de generalização” (p.15).
Uma crítica central de Milton Santos é dirigida ao foco excessivo em fenômenos visíveis, como as favelas, em detrimento de uma análise mais sistêmica e global da pobreza. Essa abordagem, de acordo o autor, frequentemente resulta em pesquisas mais antropológicas ou econômicas (métricas) do que socioeconômicas, deixando de lado a compreensão dos mecanismos estruturais que perpetuam a desigualdade. Essa preferência pelo visível contribui para “o empobrecimento da pesquisa e uma tendência para distorcer a compreensão global das realidades do mundo ‘marginal’” (p.16).
De acordo com o autor, embora as estatísticas sejam ferramentas indispensáveis para a análise da pobreza, seu uso isolado e acrítico pode levar ao bloqueio de quaisquer soluções. Sendo assim, as estatísticas devem ser complementadas com categorias analíticas fundamentadas, que considerem a dinâmica histórica, cultural e política de cada contexto.
Sobre a pobreza
Milton Santos desenvolve uma crítica ampla às definições reducionistas de pobreza, argumentando que essas abordagens frequentemente ignoram as inter-relações complexas entre fatores econômicos, sociais, culturais e políticos. O brotense ressalta que a pobreza é um conceito historicamente determinado e profundamente relativo, cuja compreensão exige mais do que parâmetros fixos, como renda ou poder de compra. Em outras palavras, o fenômeno da pobreza é multidimensional, uma articulação de fatores que se modificam conforme as estruturas sociais e econômicas.
Ao analisar as definições de outros autores, Milton Santos evidencia as limitações de tais abordagens por restringirem a pobreza a questões materiais ou à incapacidade de modernização. O autor observa que essas visões negligenciam o impacto das estruturas históricas e sociais que condicionam a distribuição de recursos e a satisfação de necessidades em diferentes sociedades.
Nosso autor dirige atenção especial à crítica da noção de “linha de pobreza”, amplamente utilizada por planejadores econômicos e instituições internacionais, descrevendo essa ideia como um recurso estático, quantitativo e simplificador, que tenta encapsular um fenômeno extremamente complexo em uma única métrica.
Para reforçar essa crítica, Santos cita Galbraith (1969), enfatizando que, em uma economia em constante transformação, a pobreza deve ser entendida como um fenômeno “relativo e dinâmico”. O geógrafo complementa que a linha de pobreza, como medida universal, é insuficiente para captar a diversidade das condições vividas pelos pobres.
Outro aspecto central abordado por Milton Santos é a relação entre os conceitos de “recursos” e “necessidades” que, para o autor, são conceitos dinâmicos e socialmente determinados, variando de acordo com a posição de cada indivíduo ou grupo dentro da estrutura social:
“Os recursos postos à disposição do homem em termos de sua posição na escala social mudam com o tempo, assim como a noção de escassez, um corolário dessas duas categorias” (p.17).
De acordo com o autor, as definições de pobreza que ignoram essa dinâmica acabam mascarando as desigualdades estruturais que perpetuam o fenômeno. Neste ponto do texto, há uma crítica à visão de que a pobreza é uma mera ausência de bens materiais, sugerindo que ela deve ser analisada como o produto de uma organização social que impede determinados grupos de acessar recursos e oportunidades em um contexto específico.
Para aprofundar a questão, Santos destaca que a pobreza não pode ser dissociada das condições de marginalização e exclusão que estruturam as sociedades modernas. Sendo assim, a pobreza deve ser entendida como uma categoria sintetizadora, que abrange tanto as limitações materiais quanto as relações sociais que as determinam. Ou seja, reduzir a pobreza a uma questão meramente econômica é ignorar as relações de poder que estruturam as desigualdades e marginalizações em cada sociedade.
“[a] pobreza não é apenas uma categoria econômica, mas também uma categoria política acima de tudo […] Somente um exame do contexto, responsável num dado momento por uma determinada combinação, pode ser de alguma ajuda para a construção de uma teoria coerente e capaz de servir como base para a ação” (p18).
Para finalizar
Milton Santos encerra o capítulo apresentando uma análise crítica sobre como as teorias de desenvolvimento e planejamento contribuíram, muitas vezes, para agravar o problema da pobreza, ao invés de solucioná-lo.
O autor observa que essas teorias, baseadas em modelos de crescimento industrial dos países do Norte Global, falharam em levar em conta realidades específicas dos países Sul Global. O planejamento, que deveria ser uma ferramenta para corrigir desigualdades, foi utilizado de forma descontextualizada, resultando em “resultados perniciosos”, pois não considerava as particularidades locais e os mecanismos reais que perpetuam a pobreza.
De acordo com o autor, ao longo de décadas, o crescimento econômico foi tratado como objetivo inquestionável, mas seus fundamentos permaneceram (e permanecem) obscuros e mal definidos. Nosso autor critica como o planejamento priorizou metas abstratas e arbitrárias, ignorando as causas estruturais da pobreza. Essa abordagem foi, segundo o autor, uma tentativa de “pôr o carro à frente dos bois” (p.19), onde os objetivos do planejamento precederam uma compreensão clara dos problemas a serem resolvidos.
Além disso, o autor denuncia as explicações simplistas ou parciais que cercam a discussão sobre a pobreza. Abordagens que reduzem a pobreza a um problema individual, como a falta de esforço ou de educação, alimentam mitos que justificam a manutenção do status quo e perpetuam a ideia de que a pobreza é inerente ao processo de crescimento econômico.
Santos critica também a tendência de transformar análises superficiais e slogans em discursos amplamente disseminados pelos meios de comunicação, que acabam influenciando até mesmo os pesquisadores. “[e] como as teorias são incoerentes, é muito mais simples impor uma forma de planejamento que não conduz a nada” (p.21).
Por fim, para o autor, apenas com uma visão crítica e global é possível discernir as verdadeiras causas da pobreza e buscar soluções efetivas. Uma reflexão final que deixa claro que a questão requer mais do que medidas técnicas: exige uma transformação das estruturas sociais e políticas que a produzem e sustentam.