Este é um texto sobre o livro O mundo inteiro como um lugar estranho
— Oi, tudo bem? Você tem um tempinho para conversar?
Li seu livro em 2017, mas agora, passados alguns anos, o que antes era estranho, ficou mais estranho. As cidades se tornaram impronunciáveis para os corpos que delas foram expulsos e a cultura, bem esta, se torna a cada dia um arquivo interminável de algoritmos.
— É porque o tempo se rompeu?
Você escreveu que “a estranheza deixou de ser o que está longe, o outro, para se tornar a forma de presença do que está aqui”. Pois bem: em 2020, ela bateu à porta com um vírus invisível. Lembro da primeira semana de março: o espanto era global. E logo o medo se fez cotidiano. O mundo fechou. O toque virou risco. O corpo, ameaça. As fronteiras — sempre tão seletivas — agora estavam fechadas para todos. Você dizia que a globalização era “um mundo sem centro nem certezas”. Pois nos faltaram até funerais. Milhões de mortos, e o luto interrompido por videoconferência. A experiência do humano foi digitalizada à força. Lembro que você investigava como as redes sociais alteravam a vida pública — mas agora é a vida íntima que se esfacelou nas stories.
— Como se escreve sobre o estranho quando o estranho é tudo?
No Brasil, a pandemia expôs todas as feridas abertas: a desigualdade, o racismo estrutural, o abandono das periferias. A morte não foi democrática. Foi política. Eu lembro que você sempre insistiu que não se pode pensar cultura sem pensar nas condições concretas de sua existência. Os equipamentos culturais fecharam. As escolas travaram. Os celulares viraram salas de aula. E quem não tinha wi-fi, sumiu. Sumiu da escola, da estatística, da esperança. Você dizia que a cultura deveria ser “um direito de cidadania”. Mas de que cidadania falamos quando a própria ideia de cidadania foi sequestrada por uma política de desinformação e ódio? Aqui, o presidente receitava cloroquina, negava a ciência, debochava dos mortos. A estranheza virou grotesca.
Mas havia também resistências. Lives de artistas em suas salas improvisadas como palcos. Campanhas de solidariedade em comunidades esquecidas pelo Estado. Uma cultura da emergência, improvisada, que lembrava — como você disse tantas vezes — que as formas de viver juntos não se esgotam nos mercados nem nos governos. Elas também se inventam nas redes de apoio, nos rituais mínimos, na arte como forma de cuidado.
Tanques, telas e fantasias democráticas
— Você lembrava que a democracia andava ferida. Pois bem, agora, ela delira.
Você falava de “sociedades sem relato”, onde o presente se desconecta do passado e o futuro parece inalcançável. Pois bem: de 2022 para cá, parece que o mundo inteiro foi atravessado por essa ruptura. A política virou performance. A verdade, ruína. A guerra voltou a ocupar o centro do mundo — e os tanques foram seguidos por hashtags.
Comecemos por fora: Rússia e Ucrânia. A invasão, em fevereiro de 2022, parecia um anacronismo brutal. Como se a história tivesse retrocedido ao século XX. Mas não era nostalgia bélica — era a geopolitização do colapso. E a guerra foi televisionada em tempo real, transmitida por celulares e plataformas, como um reality show macabro. Explosões ao vivo, memes de resistência, TikToks de soldados. A guerra agora é também conteúdo.
— Você falava da estetização da política e da videopolítica. O que dizer de um mundo onde a guerra se transforma em thread do X?
E se olharmos para dentro, a distopia é doméstica. Em 8 de janeiro de 2023, o Brasil viu sua própria capital invadida. Não por inimigos externos, mas por fantasmas internos, adoradores de pneus — alimentados por redes sociais, teorias conspiratórias e a recusa a aceitar a alternância do poder. Brasília virou cena de filme: pessoas fantasiadas de patriotas, destruindo símbolos da república como se fosse um jogo de videogame. Tudo filmado, tudo postado. Você alertava sobre o colapso do comum. Está aí: a democracia virou espetáculo. O cidadão se transformou em consumidor de narrativas que reafirmam suas crenças. O debate deu lugar à gritaria. E, como você escreveu, “já não basta estar informado — é preciso acreditar”. A desinformação tornou-se um modo de habitar o mundo.
Na América Latina, a instabilidade seguiu seu curso: no Chile, o povo votou por uma nova constituição, depois rejeitou o texto, depois aceitou escrever outro — uma democracia em busca de forma. Na Argentina, Javier Milei chegou ao poder desferindo insultos a tudo que lembrasse bem-estar social. Cortou ministérios, desmantelou a cultura, apagou o futuro em nome do “mercado”. E fez isso com memes, vídeos e motosserras. No Peru, uma presidenta chegou ao poder após a queda de um presidente eleito que tentou dar um autogolpe. Na Colômbia, pela primeira vez a esquerda assumiu o governo — e isso já é sintoma de mudança. Mas tudo parece instável, tenso, volátil.
Você dizia que os relatos coletivos se perderam. Mas talvez o que esteja acontecendo é que os relatos estão sendo hackeados. Não é que as pessoas não queiram pertencimento, mas os espaços que ofereciam isso — como a arte, a educação, a política — estão sendo corroídos por uma lógica de ódio e urgência. As redes digitais criam bolhas afetivas que transformam medo em identidade.
— Como recompor o comum quando o comum virou guerra de versões?
América Latina: entre apagamentos e reinvenções
— América Latina pensa a modernidade por fraturas. Se não me engano foi o que você disse.
Nem centro, nem periferia; nem colônia, nem metrópole. Vivemos nas bordas do projeto moderno, nos escombros do progresso e nos labirintos da desigualdade. E foi por isso, talvez, que sua obra encontrou tanto eco por aqui: porque ela entende que a cultura na América Latina não é ornamento, é sobrevivência. Mas o que acontece quando até isso — a cultura — é capturada, esvaziada, silenciada?
No Brasil, assistimos a um ciclo de desmonte sem precedentes entre 2019 e 2022. As políticas públicas de cultura foram sistematicamente atacadas. A Fundação Palmares virou espaço de negação da própria negritude. A Cinemateca queimou — duas vezes. Os editais desapareceram. Os artistas viraram “inimigos” de Estado. E os indígenas, “obstáculo” ao desenvolvimento. Você escrevia que “a cultura é o lugar onde o simbólico se articula com o político”. Pois aqui, tentaram apagar o simbólico. Tentaram dizer que arte não é trabalho, que cultura é gasto, que memória é supérfluo (não no sentido orteguiano). Tentaram transformar o país em um presente eterno, sem passado nem projeto. Mas o apagamento, como você bem sabe, também é uma forma de política cultural.
Ao mesmo tempo, a resistência crescia. Pequenas editoras, selos musicais, coletivos periféricos, artistas independentes: uma cena viva que insiste em existir mesmo sem apoio, mesmo sem palco, mesmo sem dinheiro. Porque, como você dizia, o consumo cultural também é um ato de cidadania. E muitos passaram a consumir cultura como quem respira. Um direito mínimo em tempos de colapso. Foi mais ou menos entre esse aqui e aquele acolá que lançamos esse nosso periódico.
Na América Latina, essa tensão entre apagamento e reinvenção é constante. Enquanto o Estado se omite, são os corpos, os afetos, os circuitos informais que sustentam a vida cultural. A cultura popular, os saberes indígenas, as tradições afro-diaspóricas — todos resistem à homogeneização do mercado global. Mas essa resistência, como você bem sabe, não é romântica. É frágil, e muitas vezes solitária.
— Sem a cultura o que resta? O vazio? O espetáculo?
Pandemia e (pós-pandemia?): o digital em carne viva
— Você escreveu que os congressos acadêmicos se pareciam com rituais: gestos repetidos, palavras em disputa, modos de consagrar saberes. E então veio a pandemia — e o ritual virou pixel. As universidades foram às telas. As teses foram defendidas diante de quadradinhos silenciosos. Os aplausos viraram emojis. O corpo? Suspenso. A escuta? Interrompida por falhas na conexão.
Durante os longos meses de isolamento, o digital deixou de ser uma ferramenta para se tornar o próprio território da vida. Você já alertava que as redes sociais não eram apenas canais — elas moldavam o sensível. Mas em 2020 e 2021, elas moldaram o próprio mundo. A educação, o trabalho, o afeto, o luto: tudo passou a acontecer através de interfaces. E não foi uma transição tranquila, como sonhavam os prometeicos. Foi desigual, abrupta, violenta. No Brasil, milhões de estudantes foram excluídos do ensino remoto por não terem acesso à internet estável ou aparelhos adequados. A evasão escolar aumentou. Professores e alunos adoeceram — física e psiquicamente. E, mesmo com o retorno presencial, algo se perdeu: o olhar direto, a pausa compartilhada, o corpo como espaço de escuta.
— Como reconstruir o laço social quando a mediação virou tela e o silêncio se tornou resposta automática?
A pandemia também acelerou o que você chamou de “deslocamento do espaço público para plataformas privadas”. Lives de música, teatro por Zoom, exposições virtuais. A cultura se adaptou — como sempre faz. Mas algo ali se revelou: quem tem a infraestrutura para continuar criando? Quem pode se reinventar diante do abismo? E então surgiu algo: a chamada inteligência artificial, que estava nos bastidores da personalização de anúncios, veio à cena com força total. Em 2022, o ChatGPT popularizou a ideia de que máquinas podem escrever, responder, criar. Em poucos meses, escolas, universidades e editoras começaram a se perguntar: o que fazer com isso? Você dizia que o conhecimento “não é apenas informação, mas relação, experiência, interpretação”.
E, no entanto, vivemos um tempo em que a informação se sobrepõe ao sentido. O algoritmo de processamento de dados pode responder, mas não vive, não sente, não lembra. “Produz” linguagem sem corpo; saber sem lugar.
— O que significa pensar, criar, ensinar, quando o próprio ato de escrever pode ser terceirizado a um sistema?
Alguns celebraram: “finalmente a tecnologia democratiza o acesso à produção textual”. Outros temeram: “acabou o pensamento autoral”, esses são os fáusticos. Você insistia que a produção de conhecimento precisa ser situada, encarnada. Pois é isso que precisamos defender agora: uma cultura crítica, que não ceda à velocidade, que recupere o gesto, o cuidado, o vínculo. Porque, no fim, o que faz sentido não é a resposta imediata, mas a construção coletiva da pergunta.
O planeta em ruínas: um estranho familiar
— E o clima? Você o mencionava em suas análises, mas agora…
O mundo inteiro virou lugar estranho, sim — mas talvez o mais estranho seja o céu. Ele já não avisa: colapsa. O clima, que antes parecia pano de fundo, virou protagonista. Em 2024, o Rio Grande do Sul afundou. Choveu como nunca se viu. Cidades inteiras submersas, carros boiando, famílias sobre telhados, animais sendo resgatados por voluntários. Um trauma coletivo sem roteiro. E, como sempre, os mais atingidos foram os mesmos: pobres, periféricos, indígenas, quilombolas. Os que já estavam fora do centro — inclusive no discurso da reconstrução.
Você dizia que os desastres naturais não são apenas eventos físicos, mas sociais e simbólicos. E é isso que vivemos. Porque o desastre não é “natural” — é político. Resultado de décadas de negligência, de urbanização desigual, de destruição ambiental autorizada em nome do “progresso”. O que espanta, é que já não se trata de um futuro: é o agora. A Amazônia registrou secas históricas. A floresta está ferida. Rios sumiram. Povos inteiros perderam sua base de vida. No México, em 2023, as temperaturas passaram de 50 graus. Na Bolívia, lagos evaporaram. Na Colômbia, enchentes devastaram vilarejos inteiros. A América Latina, biodiversa e fraturada, é também uma das mais vulneráveis ao colapso ambiental.
— O que significa pertencer a um território que já não nos reconhece?
Você nos ensinava a ver a cultura como mediação entre saberes, entre memórias e projetos. E é isso que comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas vêm fazendo há séculos: narrar o mundo com outras categorias. Escutar a terra, os ciclos, os sinais. Mas suas vozes ainda são tratadas como “tradição” — nunca como tecnologia de futuro. Não se trata de incluir o outro, mas de transformar o todo. A crise climática nos obriga a decolonizar o imaginário do progresso. A romper com a ideia de que a natureza é recurso, que o desenvolvimento é expansão infinita.
Mas para isso, precisamos também de novas narrativas. Novas estéticas. O cinema ambiental cresce. As artes visuais denunciam e lamentam. A literatura distópica latino-americana já não é ficção, é crônica. E até a música popular — do rap ao forró — passou a tematizar a seca, a lama, o fogo. São modos de elaborar o que as políticas não dão conta.
— Talvez só a arte possa nos ensinar a enterrar os mortos sem esquecer dos vivos. A construir memória em meio aos escombros. A seguir, mesmo sem certeza.
Como seguir no estranho
As crises não são novidade, você nos lembra — o que muda é sua simultaneidade, sua intensidade, sua velocidade. E é isso que vivemos agora: tudo ao mesmo tempo. A guerra na timeline, a enchente na notificação, o colapso na sala de aula, a ia [assim mesmo] redigindo relatórios enquanto o corpo do professor adoece.Você escreveu que vivemos em sociedades “sem relato”, onde o passado foi apagado e o futuro é suspenso.
Talvez estejamos condenados a habitar o estranho. Mas isso não é o fim. Porque, como você nos ensinou, o estranho também pode ser o lugar da criação. A pergunta é: como podemos viver juntos em meio à estranheza? Como tecer laços sem garantias? Como escutar sem tentar domesticar o outro? Como ensinar, criar, amar — mesmo em ruínas? O que nos resta, talvez, é o exercício do entre a tela e o corpo, entre o algoritmo e o afeto, entre a catástrofe e a festa.
— Canclini, o mundo inteiro é um lugar ainda mais estranho.