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Os imortais das letras também podem fazer quadrinhos?

Maurício de Sousa acaba de se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Sim, Maurício, aquele que criou a Turma da Mônica. E se você não ficou sabendo disso, não se ressinta: hoje em dia quase ninguém se importa com o que acontece ou deixa de acontecer com os ditos Imortais da ABL.

Ainda assim, quando se trata de símbolos e tradição, nunca dá para ignorar as consequências práticas das escolhas de uma instituição centenária. Aí está a cerimônia do Oscar, só para citar um exemplo, que vem perdendo audiência e relevância ano após ano, mas segue provocando comoção mundial (ao menos dentro da classe) quando premia uma mulher asiática ou ignora atores e atrizes negros de maneira sistemática.

No caso da ABL, a discussão também não é nova. Em geral, o debate não se dá por conta de relevância de tal ou qual pretendente a uma cadeira. As polêmicas giram em torno da relação (ou não) do escolhido com a Literatura (aqui em letra maiúscula, para que ninguém se ofenda).

Academia brasileira… de tretas!

Em anos recentes tivemos polêmica quando da entrada de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro na Academia, destaques incontestáveis em suas respectivas áreas de atuação (música e artes cênicas). Ao assumirem, no entanto, ambos foram devidamente celebrados, e seus discursos de posse foram amplamente repercutidos pela mídia (como, aliás, há tempos não se registrava em posses da ABL).

Gil e Fernanda, ícones da cultura brasileira, fizeram da arte a bandeira de suas vidas, e não é mera especulação afirmar que suas respectivas carreiras influenciam pessoas de todo o país, muitas das quais se tornaram ou se tornarão artistas ou influenciadores também.

Vale dizer que a Academia, desde sua fundação, opta por congregar em seus quadros “notáveis em outras áreas de atuação”, o que acaba servindo de brecha para eleger integrantes do porte de um José Sarney (político) e Ivo Pitanguy (cirurgião plástico). Irresistível imaginar qual terá sido a contribuição de tais Imortais às letras do país…

Dessa vez há um burburinho em torno da candidatura de Maurício de Sousa que, como sabemos, também é destaque inquestionável em sua área de atuação. Os quadrinhos da Turma da Mônica completam 60 anos em 2023 sem dar sinais de cansaço, tendo influenciado um número incontável de leitores, expandindo-se em animações, live-actions e derivados.

A HQ Turma da Mônica Jovem, por exemplo, chegou a esgotar tiragens de 500 mil exemplares no país (muito acima da vendagem de Marvel e DC no mesmo período). Maurício de Sousa sempre demonstrou incrível tino comercial sem comprometer artisticamente suas criações. É um destaque evidente entre os cartunistas brasileiros. Em sua carta de candidatura à Academia, mencionou que gostaria de “seguir formando novos leitores”. Touché!

Por que, então, não seria bem-vindo na ABL? Bom, há algumas considerações. Maurício não é candidato único. O filologista Ricardo Cavaliere e o jornalista James Akel concorrem à cadeira. O primeiro recebe apoio dos eruditos (parte considerável da Academia); quanto ao segundo, foi o responsável pela declaração que motiva este texto: Maurício não acrescenta nada à Academia. Cavaliere é discreto e age nos bastidores; Akel propõe feiras itinerantes para levar a Literatura onde o povo está.

Para gostar de ler?

A discussão parece ser motivada por um velho traço da Literatura-em-maiúscula: ela é elitista. Ou, se preferir, excludente.

Por mais devoção que se tenha pelos livros, é preciso admitir que a imensa maioria das pessoas não faz ideia de quem é o homem grisalho que recebeu o Nobel de Literatura e nem a poeta subversiva que se meteu entre os vencedores do Jabuti.

Começo a especular aqui: uma Academia de Letras digna do nome não deveria preocupar-se também em fomentar novos leitores? Se o mundo inteiro lê cada vez menos, no Brasil a queda é ainda mais vertiginosa. Para além da literatura infantil, cuja importância no hábito de leitura é inquestionável, não seria o caso de nos perguntarmos quantas crianças chegam à leitura adulta de ficção tendo passado antes pelas histórias em quadrinhos?

Nem vamos entrar na discussão se as HQs são ou não Literatura (Sandman mandou um salve aos literatos!). Esse embate é desnecessário, aliás. Em geral, costuma-se dizer que os quadrinhos não são literatura, mas contêm literatura. Aceitemos essa definição capenga. A intenção aqui é especular de que forma é possível fazer com que mais crianças e adolescentes descubram na leitura uma fonte de prazer.

Em um tempo em que os livros precisam “servir” para algo concreto, “prestar” para alguma coisa (como bem disse Leminski), é imprescindível que seja evidenciada essa outra faceta da leitura: divertir, envolver, distrair leitoras e leitores. E talvez o menino que fui tenha me induzido a escrever este texto, saudoso da coleção de gibis que já teve — lidos e relidos com ânimo e depois empilhados ao lado da cama como objetos de adoração (que mais tarde passaram a ser, veja só, os livros de Literatura da minha estante).

E aqui retornamos à Turma da Mônica. Ou aos quadrinhos da Disney. Ou às HQs contemporâneas brasileiras.  Aliás, nesse ponto, nossa editora Mylle Pampuch pode colaborar muito mais do que eu. Não sei se você sabe, mas ela escreveu o Guia básico e prático de Roteiro para Histórias em Quadrinho, e desenvolve oficinas regulares sobre o assunto na Gibiteca de Curitiba.

Boas revistas em quadrinho entretêm e divertem, nos apresentam personagens complexos ou simplesmente interessantes, são um deleite para os olhos e também para o cérebro. Sem falar na sensação indescritível que é segurar a revista, manusear suas páginas, sentir a textura da capa. Conheço gente que faz isso até hoje, inspecionando livros via pontas dos dedos. Em suma, HQs formam leitores (de Literatura em particular ou de ficção em geral).

Vale lembrar que o Prêmio Jabuti, o mais prestigioso da Literatura-com-maiúscula no Brasil, contempla desde 2017 a categoria “História em Quadrinhos” (depois de intensa pressão via abaixo-assinados dos fãs do gênero, diga-se). Em 2022, 10 finalistas disputaram o prêmio, que foi entregue a Escuta, formosa Márcia, de Marcello Quintanilha, um dos mais celebrados quadrinistas brasileiros.

Encerro esse texto me perguntando quantos de nós colecionamos gibis, engolimos a seco as tiradas da Mafalda, nos divertimos com o Menino Maluquinho ou nos emocionamos com os conflitos retratados nas narrativas gráficas que cruzaram nosso caminho de Leitores-com-maiúscula?

Não sou de ter muitas convicções na vida. Prefiro, em geral, os limiares e as nuances. Neste caso, porém, independentemente do resultado da eleição iminente na ABL, digo que Mauricio de Sousa e sua obra já são imortais.


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