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Os quadrinhos vão quebrar o seu coração, moça

Um diálogo do qual 95% das pessoas saem com alguma dúvida:

— Sou escritora.
— O que você escreve?
— Roteiros para histórias em quadrinhos.
— Mas você desenha?
— Não, eu escrevo.

Tenho uma confissão: estive enganando você desde a primeira Cisma. A boa notícia (ou nem tanto) é que também estive enganando a mim mesma.

“Os quadrinhos vão quebrar o seu coração”

Essa frase é atribuída a Jack Kirby, uma das lendas dos anos iniciais da Marvel — que, assim como eu, tinha opiniões flutuantes sobre o ofício de quadrinista. Já Charles Schulz, criador de Peanuts, teria dito algo muito parecido:

— Ser cartunista destruirá você. Quebrará o seu coração.

Quando, em 2007, perguntei a Claudio Seto (apenas o primeiro mangaká brasileiro) porque ele parou de fazer quadrinhos, logo me respondeu:

— Porque não dá dinheiro.

Se eu continuasse fuçando, essa Cisma viraria uma lista de lamúrias de quadrinistas: afinal, quem trabalha com quadrinhos hora ou outra se decepciona com a nona arte.

Foi num desses combos de decepção que pensei em desistir de publicar quadrinhos.  Dito assim, parece simples (era só parar de fazer, oras), mas o fato é que nunca é. 

Tem coisas que grudam na gente, e uma dessas coisas que grudou em mim foi ser roteirista de HQs. Desde 2021 tenho tentado me reconstruir, me mostrar como alguém que escreve mais do que roteiros — mas de uns tempos pra cá, algo errado não parecia certo. Tenho vivido como uma impostora, com um sinal escrito na testa, e é chegada a hora de declarar:

Nunca fui tão roteirista de HQs quanto agora.

(Pausa para respiração: por que estava fingindo ser uma pessoa que não sou?)

A maldita separação entre alta e baixa literatura, entre arte e cultura de massa, me fez acreditar que eu só seria merecedora do título de escritora se tudo que colocasse no papel fosse literatura da mais alta qualidade. E então passei a me exigir isso, a me cobrar dia após dia uma reconstrução que simplesmente sou incapaz de realizar. 

Isso porque não sou a pessoa que estava me exigindo ser. 

Junte isso a uma série de decepções em relação aos quadrinhos e uma pandemia que cortou o embalo de ir aos eventos e você terá uma autora perdida.

Os quadrinhos estão reconstruindo o meu coração

No ano passado, não escrevi uma página sequer de roteiro. Fui fechando os projetos de HQ que tinha em aberto e estava pronta para seguir em frente, numa nova fase. Não pensava mais em quadrinhos, eu mal lia quadrinhos. Estava magoada, literalmente com o coração quebrado.

Mas, mesmo magoada, não consegui largar tudo. Penso que esses caminhos artísticos que a gente faz são como árvores que precisamos continuar regando.

Quando a minha (na ocasião, futura) orientadora do Mestrado perguntou, ainda na entrevista, se eu aceitaria mudar o tema da minha pesquisa para quadrinhos, senti uma ponta de revolta, mas aceitei. 

Eu queria ser literata! LITERATA! (Queria mesmo? Não queria, nunca quis. Por que estou fingindo que quero ser?)

A chave só começou a virar mesmo quando fui chamada para trabalhar em um projeto incrível de quadrinhos didáticos (sobre o qual um dia poderei contar em detalhes). Escrever uma média de 80 páginas de HQ por mês é capaz de mudar por completo a visão de qualquer um sobre quadrinhos — ainda bem que, no meu caso, mudou para melhor.

As histórias em quadrinhos são uma forma poderosíssima de narrar — e disso eu nunca duvidei. A minha questão era o preconceito em contar histórias simples. Mas agora que estou mergulhada nos roteiros, por favor, me deixe gritar:

EU ADORO ESCREVER HISTÓRIAS SIMPLES!

Nada de ficar horas pensando em palavras rebuscadas, formas intrincadas de desenvolver plots ou quaisquer outras punhetas mentais dessas que só quem escreveu entende. Apenas uma história simples e curta que cumpre sua função de ser simples e curta. Nada mais.

Era pra ser divertido. Só isso.

O diálogo no início da Cisma mostra que, independentemente do local, sempre estarei deslocada. Em meio aos quadrinistas, uma escritora. Em meio aos escritores, uma roteirista. Mas o fato é que, por mais confuso que seja viver assim, é essa indefinição que me define.

Os quadrinhos quebraram meu coração, mas sem dúvida também o reconstruíram. Em meio a tantas dúvidas sobre o que, para mim, é ser escritora, foram os quadrinhos, e não a literatura, que me deram todas as respostas. 

Foram os quadrinhos me mostraram que existem leitores interessados nas minhas histórias. Que sou capaz de trabalhar mais de dez narrativas curtas diferentes em um mês. Que existem pessoas dispostas a apoiar o meu trabalho comprando meus quadrinhos. Que tem cada vez mais gente doida pra escrever quadrinhos (e é lindo ser uma representante disso). Que também podem ser um objeto de pesquisa interessante (e provavelmente me ajudaram a passar no Mestrado). 

Então, chegou a hora de não enganar mais ninguém: sou uma roteirista de histórias em quadrinhos. Que seja simples. Que seja leve. Que seja divertido.


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