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Por uma vida mais analógica

Nossas dúvidas, Google responde. Nossas ferramentas de trabalho são o celular, o computador, a internet (e nossas distrações também) — todas ferramentas úteis que nos ajudam no dia a dia. No entanto, quem somos quando uma delas nos falta? Nesse misto de fuga da realidade com anseios de mais produtividade, nos tornamos prisioneiros de uma cadeia de produção tecnológica a qual alimentamos e somos alimentados. 

É claro, não há escapatória. Se você está fora da internet e/ou não possui as ferramentas para trabalhar no mundo digital, você não existe. Até mesmo aquela escritora da série documental do Netflix, que é contra qualquer tecnologia (nem máquina de escrever ela tem, quanto mais um smartphone) conseguiu escapar da internet — afinal, muitos de nós só a conheceram por causa do Netflix.

(Fran Lebowitz, o nome dela é Fran Lebowitz. Tive que googlear para me lembrar).

Goste você ou não, a internet está se tornando um item tão essencial quanto ter luz e água em casa (se bem estamos quase ficando sem os três no Brasil, detalhes). A ONU, já em 2016, declarou que navegar na internet é um direito humano básico, dado o poder que a rede possui de nos ajudar a exercer nossos direitos às liberdades de opinião e expressão. De alguma forma, parece que nos tornamos menos humanos e capazes sem internet.

Assim que mudei de casa, no último mês, e me vi rodeada de coisas fora do lugar e sem internet de qualidade no cômodo que elegi como escritório, não consegui retomar o trabalho. Em parte, é claro, porque minha cabeça estava bagunçada, mas também porque, enquanto todas as minhas ferramentas tecnológicas não estivessem no lugar, eu não conseguia pensar.

A questão é que o trabalho que faço (que é basicamente ler, escrever e, às vezes, ensinar) não necessita de tecnologia para ser realizado. Eu poderia liberar uma mesa, pegar papel e lápis e começar a trabalhar. Poderia, mas não consegui.

A tecnologia é maravilhosa e nos ajuda evoluir quando bem utilizada. No entanto, há uma diferença entre usá-la como ferramenta e ser dependente dela. Eu (e deixo claro que esse é o meu caso) posso afirmar que hoje não consigo trabalhar sem o uso da tecnologia e da internet, é isso me faz passar muitas horas sentada diante de telas luminosas. Dito isso, acredito que posso apontar um desvio, uma viela dentro na minha experiência para que a dependência tecnológica seja menos agressiva. 

Algumas pessoas (que trabalham com criatividade) já me relataram que têm crises de ansiedade devido ao uso constante da tecnologia. O que há de comum entre essas pessoas é que tanto trabalho quanto o lazer delas se dá através de telas e da internet. Colocado assim, parece óbvio que vai dar ruim, mas, na maioria das vezes, a lógica é anulada pelos nossos desejos de “continuar essa atividade por mais cinco minutinhos”. E assim, de minutinhos em minutinhos, o uso saudável se torna uma dependência.

A dica número quatro do livro Roube como um artista, do designer e escritor Austin Kleon, é “use as mãos”. Nesse trecho ele diz que, mesmo na era digital, precisamos sair da frente da tela para criar. Ele, inclusive, aconselha que todos tenhamos duas mesas de trabalho: uma digital, com computadores e afins, e outra analógica, com papéis, canetas e outras coisinhas de papelaria.

Pegar no papel e sentir que seu trabalho está rendendo, eis a magia. Como já mencionei antes, meu processo natural de escrita começa com papel, lápis e borracha — mas, em prol da produtividade, negligenciei esse processo nos últimos anos.

A sensação que descrevi em outra cisma, de deixar a editora ditar as regras do meu texto já na primeira versão, quando escrevo direto no computador, não é uma exclusividade: Austin mata a charada quando afirma que “o computador estimula o perfeccionista perturbado em nós — começamos editar ideias antes de tê-las”.

Artistas não são retratados como pessoas que passam o dia inteiro sentados diante de uma tela luminosa, apertando botões. Nós os mostramos (nos filmes, nas histórias) rodeados por suas ferramentas de trabalho, se movimentando de um lado para o outro e, algumas vezes, empreendendo esforço físico além do intelectual. Então, se os imaginamos assim, por que nós não fazemos o mesmo?

A resposta, mais uma vez, é o tempo. Nós vivemos com pressa para tudo: para ter respostas, para nos divertir, para resolver problemas, para ter retorno (pessoal, financeiro), para criar, para nos comunicar. E essa pressa está nos impedindo de fazer o que desejamos fazer no nosso tempo natural, sem atropelos.

Acredito que a melhor solução para se livrar de uma dependência é cultivar hábitos pequenos. Ao invés de passar uma semana no meio do mato, sem celular, para então ficar seis meses com os olhos grudados na tela, é mais proveitoso inserir momentos offline na sua rotina diária — tanto de trabalho quanto de lazer — mesmo que isso desacelere o seu rendimento. Desacelerar é bom, e se mexer um pouco te ajudar a evitar as crises de ansiedade que mencionei antes (caso você as tenha). 

Como tudo, compreender como sua cabeça funciona criando no meio analógico e no meio digital é parte do passeio pelo seu processo criativo. Reconhecer as diferenças de cada ambiente de criação tem tudo a ver com o resultado que você espera daquilo que está criando.

Na última semana, fiquei tão impactada depois de ler a história em quadrinhos Retalhos, de Craig Thompson, que fui pesquisar sobre o autor e suas outras obras. Para minha surpresa momentânea, descobri que ele passou cerca de três anos trabalhando na HQ, sempre a desenhando no papel. “Mas é óbvio”, pensei, “essa HQ é uma obra de arte, obras de arte necessitam de tempo para acontecer”. 

Tempo de produção. Tempo de maturação. Tempo para encontrar seus leitores. 

No fim, nós só temos a perder quando centramos nossos processos e nossa vida em quadrados luminosos. As experiências são múltiplas e singelas; nós só precisamos aprender a equilibrá-las para tirar o melhor proveito de cada uma delas.

P.S.: Como é bom o cansaço de ter acabado de cismar à mão.


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