1.
Escrever é um estar atento. Sei que já disse isso de umas trinta maneiras diferentes, mas se tanto repito é porque as camadas vão caindo, como cortinas, me revelando uma nova ponta do iceberg.
Naturalmente, toda descoberta é particular e, ainda mais se tratando de escrita, o baralho de dicas é bastante pessoal — mas sempre é possível encontrar interseções aqui e acolá.
A interseção que identifico hoje é o isolamento. Não o conceito de isolamento físico com o qual convivemos na pandemia, menos ainda o isolamento que o senso comum atribui ao ato da escrita.
Tem um outro isolamento, que a gente ignora (e que talvez seja uma consequência dos anteriores), que é o isolamento que a introspecção provoca: o isolamento de ficarmos muito tempo com nossos sentimentos e nossas ideias.
2.
A escrita pode ser usada como uma ferramenta para aprendermos a lidar com as nossas questões internas. Eu mesma fiz isso milhares de vezes, continuo fazendo e recomendo que todos (todos mesmo!) o façam. Escrever (de preferência, no papel) é a materialização do nosso desejo intrínseco de comunicação, de extrapolação dos limites da nossa cabeça.
No entanto, há uma diferença enorme entre fazer da escrita um meio (uma ferramenta para desabafo e organização de ideias) e um fim (um livro, um poema, um texto que faça sentido para outras pessoas). E essa diferença entre escrever como meio e escrever como fim precisa estar muito clara para quem escreve.
3.
A escrita como ferramenta, como forma de expressão, necessita apenas de papel, caneta e alfabetização para acontecer. Apesar de auxiliares, direcionamento e técnica são secundários. Nesse estado, a escrita é uma forma de canalizar reflexões que, na maioria das vezes, não precisam se tornar públicas.
Como uma forma individual e privada de materializar pensamentos, a escrita tem esse poder de nos colocar em movimento, em especial ante questões imateriais, como sentimentos, dúvidas, ideias e decisões.
Nestes momentos, o objetivo de quem escreve é desenrolar o incômodo da vez.
4.
A escrita como fim, como algo a ser publicado, é outra esfera. Antes de pensar se essa escrita é ou não é uma forma de arte, ela é uma forma de comunicação — e comunicar pressupõe transmitir uma mensagem ao outro.
Comunicar exige mais, tanto do emissor quanto do receptor — e é papel do emissor controlar o nível de exigência do texto que está produzindo. Dessa forma, escrever se torna mais do que meramente materializar uma ideia e jogá-la no mundo. Além dos trabalhos expressivo e criativo, é necessário também o trabalho analítico, para que a ideia extrapole a expressão individual e se torne uma mensagem que gere interesse coletivo.
5.
Colocado assim, fica fácil diferenciar, certo? Não, e na verdade isso pode ser (mesmo aos mais esclarecidos) uma armadilha quando o querer expressar e o querer publicar se misturam.
Isso porque expressar e comunicar são (com o perdão do clichê) faces da mesma moeda. Muitas vezes, quando nós expressamos algo no papel, o que escrevemos faz tanto sentido para nós que acreditamos que aquilo possa fazer sentido para o outro. No entanto, é comum que um texto seja apenas fruto do desejo de expressar (uma ideia, um sentimento, uma reflexão et cetera) e, por mais que acreditemos que o que escrevemos possa gerar valor para o outro, não gera.
E é esse não gerar valor que resulta em um dos maiores questionamentos de quem escreve: por que ninguém se interessa pelo que escrevo?
6.
Eu escrevo e publico histórias porque todas as histórias que li, vi e ouvi me ajudaram a chegar até aqui. Histórias que me marcaram, me divertiram, mexeram comigo. Quando penso nisso, o objetivo da minha escrita aflora, liberta de egos e recompensas. Escrever deixa de ser uma caça pelo reconhecimento para se tornar a minha maneira de existir no mundo.
Mas para chegar nessa de “escrevo histórias” precisei dar inúmeras voltas (algumas documentadas nas Cismas), testar, aprender a diferenciar as intenções de escrita e entender o meu processo criativo — sem falar em todas as outras questões psicológicas com as quais todo ser humaninho precisa lidar ao longo da vida, e que influenciam a escrita.
É um processo (desgraçado) esse, de se descobrir escritor de que. Além de escrever todos os dias, às vezes duas ou três vezes por dia e com objetivos diferentes, com o tempo a gente precisa entender o que tanto quer fazer com as habilidades adquiridas.
7.
Antes de pensar em planejamentos, estratégias e ferramentas, precisamos nos perguntar “por que estou escrevendo agora?”. Isso nos dá, ao mesmo tempo, liberdade e foco — os principais elementos de que precisamos para comunicar.
Por exemplo, agora estou escrevendo especificamente para você que lê o Lambrequim. Para você que se interessa por reflexões sobre escrita. Pensando nisso, escolho uma linguagem leve, divido o texto em partes, busco um encadeamento lógico, et cetera. Em suma, quando escrevo Cismas, me imagino conversando com você.
É muito diferente do que escrevo nos meus cadernos. Neles, a conversa é comigo mesma. Muito do que escrevo ali é pura expressão, uma forma de refletir sobre o meu momento presente. Por mais que no momento que escrevi, o texto faça o maior sentido para mim (estético, lógico, expressivo) e eu sinta vontade de partilhar o resultado, na maioria das vezes não é algo publicável.
Ao mesmo tempo, é injusto dizer que a escrita como expressão é menor do que a escrita como comunicação.
8.
Cheguei até aqui montando um imbróglio, e agora pretendo desfazê-lo. Depois de anos refletindo sobre escrita, eis o que funciona para mim:
Toda escrita é válida, mas nem toda a escrita é publicável. Apesar disso, é impossível escrever algo publicável sem antes praticar (e muito) a escrita livre.
Concordo com a Julia Cameron quando ela diz que uma das maiores dificuldades de ser escritor é escrever sem pretensão. Ao propor as Páginas Matinais, ela reconhece, sendo escritora, que existe uma diferença entre a escrita despretensiosa e a escrita como forma de trabalho e expressão — mas que, mesmo com objetivos diferentes, os dois momentos de escrita se complementam.
O raciocínio dela me pega porque eu vivencio a escrita da mesma forma. Em seu livro The Right to Write (ainda sem tradução para o português, infelizmente), Julia fala que escrever é “ouvir” as palavras e histórias que passam por nós. Mesmo que você ache essa ideia um pouco hippie para o seu gosto, ela faz sentido.
É comum lermos ou escutarmos escritores relatando como os personagens ganharam vida própria ou como a história se encaminhou sozinha. Os relatos se repetem em outras áreas da criação, como quando um compositor conta como “recebeu” uma música ou um artista visual “recebeu” sua obra.
O que aconteceria com a nossa escrita se, antes da teoria, antes da técnica, nós apenas nos disséssemos “estou escrevendo com X objetivo” e deixássemos fluir?
Escrever se tornaria, no mínimo, mais fácil.
9.
No entanto, para deixar fluir, é preciso se permitir escrever com leveza. E, para atingir a leveza, é preciso tirar o ego do caminho.
Quando deixamos fluir, escrever, antes um ato racional, se transforma numa forma de sintonia com o mundo de dentro e de fora. Com a racionalidade — ou, para usar o termo da Julia, o nosso censor interno — de lado, o eu diminui até se calar, nos permitindo ouvir as palavras que realmente desejam ser escritas.
E é aqui que os momentos de escrita como expressão e escrita como comunicação se complementam. A melhor maneira de colocar nosso censor interno para dormir é escrever de forma livre, desafogando no papel nossas questões mais pessoais. Além do óbvio — que são os benefícios terapêuticos dessa forma de escrita — escrever para você, sem se preocupar em mostrar o resultado daquilo para mais ninguém, é pura liberdade.
Se você quer escrever bem, você precisa estar bem com você mesmo — e a melhor forma de juntar o útil ao agradável é a escrita livre.
Você vai escrever um monte de porcaria? Vai. Vai jogar no papel reclamações e choramingos? Vai, com certeza. Vai falar sobre alegrias, conquistas, saudades, dívidas, desejos, decepções? Sobre isso e tudo mais que você precisar expressar.
E então, com o tempo, você passará a ver suas questões sob um novo ponto de vista, abrindo espaço para o mundo à sua volta. A urgência de publicar cada texto escrito, em busca de atenção, desaparecerá, porque você terá aprendido a lidar com o que acontece dentro de você. Terá aprendido a separar a sua escrita das suas aflições.
Quando esse dia chegar, você desejará escrever e publicar não para desabafar o peito, mas como uma forma de celebrar a vida que passa por você. Nesse dia, você não estará mais isolado, com o ego clamando por atenção — você estará em sintonia, mais atento ao que acontece ao seu redor do que a si mesmo.
Nesse dia, eu terei o maior prazer de ler as suas histórias.