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Sommelière de livros

por Patricia Dias

Um dia desses, ao sairmos de uma livraria, meu marido desabafou: “dentro de uma livraria eu me sinto como em lojas de vinhos. Sei que tem muita coisa boa, mas não consigo escolher”. Achei o comentário curioso, e fui obrigada a concordar. Já tive a mesma sensação e, por muito tempo, me senti perdida diante das prateleiras de livros. “Hoje quando saio de mãos vazias é por falta de dinheiro e não por falta de opções”, respondi. Com o tempo, aprendi a escolher, a conhecer meus gostos e interesses. “Então você é uma sommelière de livros?” Acho que sim, respondi.

Gostei da comparação com os vinhos, e me sinto a própria sommelière de livros. Ou curadora ou mediadora de leitura. Nomes diferentes para designar uma peça fundamental no incentivo à leitura: o profissional que faz a ponte entre o livro e o leitor. Esse papel pode ser desempenhado por professores, bibliotecários e por qualquer pessoa que goste de ler e compartilhar suas leituras. É uma pena que grande parte das livrarias não tenha livreiros especializados que possam desempenhar essa função e auxiliar leitores perdidos diante de tantas possibilidades.

Para uma boa curadoria não há fórmula mágica — precisa ler muito, conhecer obras e autores, estudar literatura, ter uma noção sobre mercado editorial — e também uma sensibilidade para indicar o livro mais adequado para determinada pessoa em determinado momento. Como diria meu autor contemporâneo do coração — João Anzanello Carrascoza — “é preciso ler os livros mas também ler as pessoas”.  Com o tempo, vamos aprendendo (sobre livros e sobre pessoas) em um processo contínuo, já que a formação leitora dura a vida toda. Mesmo os leitores mais experientes sempre encontrarão um livro ou autor completamente desconhecido para desbravar.

Penso que a sommelière que eu me tornei começou a nascer há muitos anos, mais precisamente em 1994, quando ainda adolescente assisti a uma palestra com o escritor Paulo Venturelli. Lembro o quanto fiquei impressionada com sua fala, suas muitas histórias sobre livros e escritores. Infelizmente, perdi as referências e o entusiasmo. Tempos depois, fiquei sabendo que Venturelli possui dois apartamentos no mesmo prédio para poder acomodar todos os seus livros. É ou não é o sonho de qualquer leitor viciado? Depois dessa descoberta o autor virou ídolo definitivamente.

E numa daquelas surpresas bonitas da vida — que, aliás, confirmam a ideia de que tudo é um ciclo — o meu filho viveu uma experiência semelhante. O escritor esteve na escola do João em um evento literário em 2016 e, assim como eu anos atrás, ele também foi fisgado pela magia do encontro livro-escritor-leitor.

Em 2015 fiz a minha primeira oficina de escrita. Foi uma oficina gratuita, com o autor Cezar Tridapalli, e eu não tinha pretensão de escrever nenhuma linha, somente o desejo de aprender. Estava feliz pela oportunidade de ficar sentada duas horas ouvindo alguém (que eu mal conhecia) falar sobre livros. Saí da sala extasiada, desejando passar o resto do dia ouvindo sobre as características do romance, os grandes romancistas e tudo mais que se referia ao universo literário.  Ganhei muito mais que o livro sorteado ao final do encontro: descobri algo que me motivava de verdade.

Depois daquela aula, acumular leituras a ponto de entender boa parte das referências e exemplos que eu ouvia passou a ser minha meta de vida. Iniciei um longo processo de autoformação literária. E uma das partes mais complicadas era (e ainda é) não me perder em meio a variedade de livros e temas, e encontrar as melhores formas de sistematizar as leituras. Da menina-leitora que fui, carrego a curiosidade sobre os mais diversos assuntos, o amor pelas enciclopédias e a falta de foco. Preciso controlar o impulso natural de passar de livro a livro — especialmente os mais novos — pois basta dar uma primeira olhada para desejar engatar na leitura.

O filósofo Michel Foucault aponta os danos decorrentes do acúmulo de leitura, como a agitação da mente e a instabilidade de atenção, “se escrever muito esgota, o excesso de leitura dispersa”. Segundo o autor, leitura e escrita devem caminhar juntas visto que são complementares. Como entusiasta da escrita de si e do uso de cadernos (os hupomnêmatas), defendia a importância de registrar o que se lê.  A prática do registro e da reflexão são caminhos para evitar sermos simplesmente engolidos pelas pilhas de livros.

Virginia Woolf em A arte do romance, concorda que devemos nos controlar e focar nossa energia no ponto certo, ou melhor dizendo, no livro certo.  Porém quem decide qual é o livro certo e qual a melhor maneira de percorrê-lo é o leitor, uma vez que “o único conselho sobre leitura que alguém pode dar a outra pessoa é não aceitar conselhos, seguir seus instintos, usar sua razão, chegar a suas próprias conclusões”. E quem somos nós para discordar?

Com maior ou menor grau de organização, lendo um único livro ou lendo vários ao mesmo tempo, não importa. Quem faz as regras (e quem as burla) é o leitor.  Sommelier ou não, o que mais importa é a liberdade e a fruição leitora.


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