Houve tempo em que a tecnologia, no imaginário coletivo, pouco ou nada se distinguia do sobrenatural. Ao longo da história humana, tecnologia de ponta sempre esteve envolta em uma aura de misticismo, exceto para os poucos que conheciam seus mecanismos. Pensemos na lâmpada elétrica, no telefone ou no rádio, por exemplo. Seus inventores desafiaram a incredulidade de contemporâneos e sofrearam campanhas de descrédito público.
Arthur C. Clarke, escritor de diversos livros com temática scifi e co-roteirista de 2001: uma Odisseia no espaço escreveu que “qualquer tecnologia realmente avançada não se distingue da magia”. Clarke, um escritor com os pés no futuro, obteve reconhecimento científico (inclusive de Carl Sagan) por explorar com embasamento os limites do possível em seus livros, não raro conseguindo antever tecnologias que depois saíram da ficção e adentraram nossas casas. A ficção científica teve seu auge em meados do século XX, quando literatura e cinema antecipavam as descobertas tecnológicas para o grande público.
Antes disso, porém, o senso comum não raro temia os avanços da tecnologia, que eram associados ao sobrenatural. Ou recebidos com assombro. Dentre tantas histórias, deixo a curiosa participação de Dom Pedro II na popularização do telefone. Em 1876, quando Graham Bell ainda não havia conseguido patrocinar a produção em larga escala de seu invento, o Imperador da Terra Brasilis foi convidado ao evento teste do aparelho e, ao ouvir perfeitamente a voz do interlocutor que estava distante, exclamou:
Meu deus, isto fala!
— Meu Deus, o ChatGPT escreve livros! — disse (quase) ninguém.
Não é ousadia afirmar que ninguém mais confunde tecnologia com magia (exceto aquele seu tio que ainda procura Ratanabá). No máximo (e isso fazemos muito), questionamos os impactos inerentes à relação humana com a tecnologia (uns milhões de empregos perdidos, gerações de jovens em distúrbio, ausência crônica de contato interpessoal e por aí vamos). No entanto, até o idoso mais digitalmente excluído sabe que o cartão que ele encosta na maquininha paga a conta graças a um avanço tecnológico — e não a algum mago místico metamorfoseado no aparelho. Sim, talvez ele ache que o banco o esteja roubando magicamente, mas essa é outra história.
Em nosso tempo, a tecnologia sepultou a magia. Os místicos existem e estão por aí, mas em geral não são páreo para o portento da ciência, com sua velocidade alucinante e resultados palpáveis (ou invisíveis). Essa constatação fica a cada dia mais evidente – e já tem consequência, inclusive, na ficção, que parece buscar no polo oposto sua inspiração. Os blockbusters tendem a ser cada vez mais cheios de referências a multiversos para dar conta de (talvez) arrancar um rápido susto da audiência. Para cada Tony Stark cheio de gadgets há centenas de mutantes e/ou alienígenas pairando no imaginário contemporâneo. Estaria a ficção antecipando a iminente possibilidade de viagens intergalácticas e extraterrestres? Especulo que a questão seja bem menos empolgante.
Anestesiados, uni-vos!
O ano era 2011, o que equivale dizer: a infância das redes sociais. Quando Black Mirror estreou na TV britânica, muito mais do que o clássico e polêmico episódio do porco, foi The entire story of you, o terceiro episódio, que catapultou a série como a queridinha de jovens místicos, gamers e conspiratórios de plantão. Como assim chip dentro da nossa cabeça? Como assim sociedades baseadas em quantidade de likes? O grande trunfo do criador, Charlie Brooker, foi reunir diversos grupos ao redor de um mesmo desconforto: para onde a tecnologia vai nos levar?
A visão não era nada animadora – e, no entanto, hoje tudo parece estranhamente sedimentado. De lá para cá, alternando roteiros surpreendentes com tramas óbvias, Black Mirror parece chocar cada vez menos. E nada tem a ver com a qualidade das histórias. Abelhas robôs “cancelando” alvos humanos? Ok. Download de nossa memória para a posteridade? Ah, beleza… Aplicativos de encontro que escravizam os usuários? Bocejo. Quando se trata de tecnologia, nada mais nos assombra. É uma anestesia cotidiana.
A grande série de ficção científica do momento talvez seja Ruptura (Severance), cuja única temporada revela um tempo aterrador em que é possível dividir a identidade (literalmente) em duas partes distintas e (uau!) incomunicáveis. De forma consensual! A tecnologia presente na série parece quase arcaica em pleno 2023 (chip no cérebro, sério?), mas é a temática de conspiração que dá o tom da narrativa. Mais do que emular o alcance da tecnologia, os roteiristas estão interessados em problematizar as consequências dela.
Brooker também parece ciente disso há alguns anos. Em temporadas mais recentes, Black Mirror testou a interatividade, investiu na estética cinematográfica, parodiou Star Trek e chamou celebridades para o elenco. Mas tudo ainda girava em torno de dispositivos, sistemas e tecnologia. Até agora…
Isso é muito red mirror!
A sexta temporada foi lançada recentemente na Netflix. E, apesar da Anitta não ter curtido muito, os experimentos de Brooker se mantêm. Antes, porém, que essa coluna vire uma resenha, devo avisar que esse texto é uma especulação. Por isso, posso sugerir que Black Mirror não é (nunca foi?) sobre tecnologia. O espelho preto, na realidade, se referia ao nosso reflexo. A coisa toda sempre foi sobre ética, sobre assistir e pensar: o que eu faria neste caso?
Sim, a tecnologia sempre esteve presente. Mas a tensão dos episódios, menos por conta do suposto avanço de tal aplicativo ou ferramenta, era gerado pelos dilemas morais a que seus personagens eram expostos.
E é aí que entram dois episódios da nova temporada: Black Mirror abraçou o sobrenatural! O dilema característico da série está lá, dando as cartas para a tensão narrativa – mas nada tem a ver com gadgets, sistemas ou implantes.
É demônio e lobisomem mesmo!
Charlie Brooker já havia dado alguns indícios dessa mudança, com o selo Red Mirror acompanhando trailers da temporada. Independentemente da reação dos fãs, muito devotos, a guinada ao fantástico capta o espírito do tempo, que demanda uma ficção científica que explore outras paragens, sob o risco do espectador achar que está assistindo a um documentário. Já é possível especular que a tecnologia anestesiou nossos sentidos? Se a ciência explica tudo, e o futuro se parece cada vez mais com o agora, a ficção talvez decida não imitar tanto a vida, para dar ares tecnológicos ao que é pura magia.