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Tudo é ilusão (ou como desisti de ser escritora)

O que estou fazendo aqui?, é o tipo que pergunta que me faço com frequência — e, com frequência, não encontro resposta. Sempre tateando, sempre tateando, como se sempre no escuro, em busca de. Se você acompanha o Lambrequim há algum tempo, já notou que as Cismas estão rareando, e os textos sobre escrita, então, nem se fala. Não sou de fechar portas, por isso prefiro pensar que, por enquanto, o chamado de falar sobre escrita anda calado.

A questão é que, se um chamado anda calado, significa que outras vozes ganharam força. Por isso, mesmo sob o risco de me contradizer (e, por favor, não despenque da cadeira), preciso dizer que andei pensando que esse ser escritora defendido por mim foi apenas uma invenção, uma construção para simplificar algo mais difícil de admitir: o meu chamado não está concentrado na escrita, mas sim em moldar sonhos e memórias na forma de histórias — e isso independe da técnica e da linguagens usadas. 

Escrevo isso não para justificar a falta de Cismas nos últimos tempos, mas para abrir uma reflexão a partir da descoberta que fiz sobre o que me levou a querer ser escritora. Acredito, como sempre, que minha reflexão possa te ajudar a refletir também.

A minha construção de ser escritora vem da infância, da primeira vez que entrei numa biblioteca, aos 11 anos. Preciso fazer parte disso, pensei, apaixonada por todos aqueles livros juntos. À medida que fui lendo, crescendo e escrevendo, fiquei cada vez mais apegada à ideia do tipo de escritora que eu deveria ser — e, de diversão, a escrita passou a ser um tipo de cobrança. De um lado, professores diziam que minha escrita era infantil; de outro, eu ficava comparando a minha escrita com a de outras pessoas, que tinham prêmios e reconhecimento público. Achei que estudar mais sobre escrita, escrever sobre o assunto e ministrar oficinas me colocaria na cena, me daria aquilo que eu estava buscando. 

No entanto, ano após ano, essa cobrança foi me consumindo. Atingir objetivos já não me causava mais satisfação porque, quando conseguia algo pelo qual estava lutando (como publicar um novo livro, por exemplo), eu já estava desejando algo muito maior, mais pra frente. Eu sempre queria estar no meu futuro, nunca no meu presente.

Assim que elaborei tudo isso, desisti de ser escritora.

Talvez soe como algo bobo, mas ser escritora era o que dava sentido pra minha vida. Era como eu justificava todos os meus atos e escolhas, um fim para todos os meios. Então, desistir de ser escritora foi como desistir de um pedaço de mim — um pedaço que carreguei desde aquela primeira visita à biblioteca.

Com o fim da cobrança, veio também um vazio. O que sou agora?, a pergunta gritando por uma definição. Aos poucos, o vazio foi se transformando em abertura para outros interesses que eu tinha deixado pra trás, em prol de ser escritora, como minha relação com a cultura japonesa, com a música, com o estudo de idiomas, com os quadrinhos e até com uma novidade: decidi aprender a desenhar.

Continuei escrevendo, é claro. Mas, se antes, cada palavra que eu colocava no papel era como um compromisso sagrado, que deveria ser pensado nos mínimos detalhes, agora tenho experimentado a liberdade de escrever da forma como penso, sem a intenção de causar impressões elevadas sobre a forma como me expresso.

Outra mudança que aconteceu foi que passei a valorizar mais o que eu já fiz. Se enquanto eu ficava me cobrando para ser escritora, achava que tudo o que tinha feito antes era um lixo, agora me vejo como alguém com valor, que gera movimento dentro de um todo, da cena artística e criativa de agora, que está acontecendo enquanto trocamos mensagens e saímos publicando nossos trabalhos por aí. Descobri que o que me move e dá sentido ao que estou produzindo não é mais um ideal, mas sim a troca de ideias que meus projetos proporcionam.

É claro que ainda busco reconhecimento e gostaria de ganhar prêmios, mas a diferença é que desejar isso não me causa sofrimento. Não há mais uma cobrança por escrever algo digno de ser escritora.

Ao invés de cobranças, criar histórias. Mover as pessoas, entretê-las. Tornar as vidas mais leves e, se for o caso, mexer com suas emoções. Escrever, de fato, não precisa ser o centro de tudo.

Já os sonhos e as memórias, sim.

De tudo que se perde, sou o pedacinho que fixo, em forma de história, no tempo.

P.S.: essa Cisma foi escrita ao som de Haretsu (破裂) da banda King Gnu. Subete wa maboroshi (すべては幻) é um dos versos do refrão e significa tudo é ilusão. Já o nome da música significa ruptura.


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