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Fique zen e escreva

Abri um novo arquivo com desdém. Peguei meu caderno de ideias já temendo “o próximo” tema escolhido. Já com ódio, comecei as primeiras linhas de um novo texto, e as apaguei em seguida, julgando-as simplórias. Recorri às minhas anotações de leituras, na esperança de falar sobre um livro — e encontrei tudo o que precisava logo no primeiro trecho que pincei de Zen na arte da escrita.

Ou melhor, levei um verdadeiro soco no estômago. 

O Ray Bradbury ensaísta-escritor se apresenta como uma figura motivada, que entregou o que tinha de melhor em cada texto escrito. Ele declarou escrever milhares de palavras todos os dias desde a infância e não ter desanimado diante das negativas que recebeu em sua carreira — pelo contrário, ele criou estratégias para que seus textos rejeitados fossem publicados e alcançassem o público.

Como escritor de ficção científica, teve seus contos publicados a partir dos anos 1940 em diversas revistas especializadas; foi autor de romances distópicos conhecidos — como Farenheit 451 — e escreveu roteiros para o cinema. Ao longo dos ensaios de Zen na arte da escrita, ele conta que, além de ler muito e de tudo, também era um cinéfilo que via muitos filmes e séries dos mais variados gêneros e gostos. Para ele, um escritor deveria estar aberto para consumir o máximo de narrativas que pudesse, desde histórias intelectuais até pastelões.

Penso nesse escritor que viveu 91 anos escrevendo. Penso nele durante a infância, desvendando mundos em HQs e parques de diversões. Penso nele se casando aos 27 anos com Marguerite McClure — sua primeira e única namorada —, tendo quatro filhas com ela e vendo-a partir depois de 56 anos de casados. Penso nele se locomovendo a pé ou de bicicleta pelas ruas de Nova Iorque, sem nunca ter tirado uma carteira de motorista, e tendo que trocar sua liberdade por uma cadeira de rodas, após sofrer um ataque do coração, aos 79 anos. Penso nele nos dez anos seguintes, participando de convenções de ficção científica, até se aposentar. Penso nele publicando, uma semana antes de sua morte, um ensaio na revista The New Yorker sobre sua inspiração para escrever.

Quanto mais leio sobre escritores e processos criativos, mais certeza tenho em afirmar que não há treino, talento ou inspiração que substitua a motivação para escrever. A habilidade de seguir em frente com o trabalho, apesar de, é a única força essencial para o escritor. 

“Não escrever, para muitos de nós, significa morrer”. Essa frase, ainda na introdução do Zen na arte da escrita, responde a qualquer dúvida que temos quando nós, escritores, buscamos justificar o nosso ofício. Eu mesma costumo perguntar “por que você escreve histórias?” aos meus alunos nas oficinas que ministro e deixo alguns sem resposta — talvez porque a resposta seja anterior à pergunta. Talvez porque não escrever signifique deixar de viver.

Uma das habilidades que precisamos desenvolver na nossa Inteligência Emocional é a de se manter motivado. O psicólogo Daniel Goleman afirma que algumas pessoas têm mais propensão de seguirem motivadas do que outras — como parece ser o caso do Ray Bradbury. No entanto, a neuroplasticidade cerebral nos permite aprender a habilidade emocional da motivação, independente da nossa idade. Assim, além de treinar a nossa escrita, precisamos treinar a nossa capacidade de querer escrever.

Em outro momento, quando eu disse que “quis escrever” na infância, talvez eu tenha me apaixonado pela escrita. Como acontece com várias pessoas, minha paixão inicial pelos livros e pelas palavras foi a chave para que eu descobrisse o prazer de entrar no estado de fluxo. O conceito, apontado pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, é uma forma de motivação extrema, durante a qual ficamos tão focados e felizes que nos esquecemos de tudo — até mesmo da passagem do tempo. Logo, se a escrita proporciona tal prazer ao escritor, fica fácil entender que sem ela a vida termina.

No entanto, apesar de ser fácil se manter motivado quando estamos dentro do fluxo, o mesmo não acontece quando estamos fora dele. Começar a escrever, ou até mesmo arranjar tempo para uma atividade que não nos recompensa de imediato, é complexo. Pagar os boletos, socializar e saber o que está acontecendo ao nosso redor é tão vital quanto escrever. E é aqui que o prazer proporcionado pela escrita perde a importância e nos faz questionar porque continuamos produzindo.

Com esse turbilhão em mente, Ray Bradbury me deu o tal soco no estômago.

O que a escrita nos ensina?

Em primeiro lugar, e antes de mais nada, ela nos lembra de que estamos vivos e que isso é um presente e um privilégio, não um direito. Precisamos nos apropriar da vida, já que ela nos foi dada. A vida pede recompensas, pois nos concedeu o ânimo.

Então, embora nossa arte, ainda que assim desejemos, não possa nos salvar de guerras, privação, inveja, cobiça, velhice ou morte, ela pode nos revitalizar no meio de tudo isso.

Em segundo lugar, escrever é sobreviver. Qualquer arte, qualquer bom trabalho, claro, significa isso mesmo.

(…)

É preciso embebedar-se da escrita para que a realidade não possa te destruir.

Ray Bradbury, em Zen na arte da escrita

Fiquei paralisada por alguns minutos diante do texto que acabei de colar dentro do meu, lendo-o e relendo-o em busca do que mais eu teria a dizer depois disso.

Há exatos cinco dias, comentei com o Cássio que eu precisava escrever mais, muito mais do que escrevi até então. O desafio, é claro, não seria o ato da escrita em si, mas o que me motivaria a repeti-lo dia após dia, no volume que estava me propondo.

A resposta, mais uma vez, é anterior à pergunta — afinal, não importa o que me motive desde que eu escreva. Assim como o Ray Bradbury, escrevo simplesmente porque estou e para continuar viva.


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