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Lambrequim ano 4 Mylle Pampuch

Lambrequim, ano 4

14 de abril de 2021, primeiro Lambrequim. Naturalmente, uma quarta-feira. CPI da Pandemia no Senado. Sim, estávamos no meio da pandemia. Começamos enviando pelo Mautic, depois pelo MailChimp, depois pelo Substack — mas nada disso importa. O importante é que a gente achava saber o que fazia. Só achava.

Tenho um interesse imenso em memória. Memórias dos outros, memórias próprias. Desde criança vejo o efêmero e sofro por antecipação. Mudar de casa, de cidade, de grupo: não pela novidade, mas pela despedida. Dizer adeus para pessoas, paredes, rotinas. Para quem eu era naquele contexto, talvez o mais difícil.

Como todos, já fui muitas — e continuarei sendo, entregue à ironia: o estímulo da novidade compensando a tristeza da despedida. Sigo em frente, sempre em busca de novos enigmas. De preferência escondidos entre passado e mistério. Confesso que me interesso mais pelas memórias das pessoas do que por elas mesmas.

O tempo é meu vício. Nada escrevo sem antes colocar data (e, ultimamente, hora). Me registro assim desde a infância. Talvez pelo inconsciente desejo de contar uma história incrível, ou ao menos interessante, sobre mim mesma. Em vão. Minha história são papeis amontoados e ideias desconexas. Aos poucos, vou me desapegando de ser incrível — hoje, por exemplo, só quero ser eu mesma.

A gente finge saber o que está fazendo, mas nunca sabe de fato. Finge planos, finge metas. Finge seguir caminhos escolhidos, enfrentar riscos calculados. Eu, por exemplo, minto o tempo inteiro. Finjo suportar as situações climáticas, sociais e políticas em que nos metemos. Minto, especialmente a mim mesma, que escrever e publicar histórias, as minhas histórias, é um ato válido, para o qual devo dedicar todo o meu tempo. Minto, para poder levantar da cama e continuar escrevendo.

A vida prática nos obriga o saber técnico. Hayao Miyazaki trabalhou por dez anos no seu último filme, O menino e a garça. Ao longo da produção, ele não conseguia fazer nada. Sozinho, morreria de fome, queimaria todos os seus bolinhos. Ele se desliga do mundo, da vida prática, e vive dentro da história que está criando. Os amigos próximos afirmam que ele viaja entre a ficção e a realidade. Dez anos assim, mergulhando fundo. Miyazaki diz que precisa abrir a tampa da cabeça, buscar no escuro. Tirar do subconsciente.

O ato criativo exige o não-saber. Ter dúvidas até se amaldiçoar. Transitar no instinto. Adiantar-se à técnica, mero anseio de contato. Fazer, antes, pelo incurável desejo. É do não-saber que brota tudo que encontramos pelo caminho. Na teimosia do artefato. Em externalizar aqueles mundos de dentro. Se maior a dúvida, tornar-se maior do que ela.

O Lambrequim, um mar de dúvidas. Se continuar, o que escrever. Cada vez, mais um experimento, registro público de encaminhamentos. Cada vez, um pedaço se vai, no obscuro do tempo. As palavras lambendo quem a gente foi. Quem a gente fingiu ser. Em especial, o que a gente se desafiou a fazer.

As fórmulas se empilham, pesos mortos de contextos. Hora de abrir a tampa da cabeça, mergulhar mais fundo. Fingir que nada de importante está acontecendo. Ver os bolinhos pegando fogo, e mesmo assim, comê-los. Agir, sem se perguntar se é propício. Seguir, com fusão em escrita.

Aqui é hoje. A história a gente vai escrevendo.


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