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Lendo a mandala de Cortázar, mais conhecida como Rayuela

Lendo a mandala de Cortázar, mais conhecida como Rayuela

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Cortázar é um lírico, um sentimental. Devo dizer que, fora uns esparsos microcontos, estou começando por O Jogo da Amarelinha — e, ao lê-lo quase que 60 anos após sua publicação, fica fácil perceber como jogamos nosso lirismo na lata do lixo. 

As histórias contemporâneas são, no mínimo, mais frias, cheias de técnica, de truques, de condições para existir para captar o leitor. Em muitas delas, quase não há espaço para a digressão, muito menos para a experimentação — recebemos o que acontece com o personagem, e quanto mais vertiginosa a ação, melhor. 

Entre o Yin e o Yang, quantos éons? Do sim ao não, quantos talvezes? Tudo é escrita, ou seja, fábula. Mas de que nos serve a verdade que tranquiliza o proprietário honesto? Nossa verdade possível tem que ser invenção, ou seja, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas.

(Capítulo 73, página 358)

A modernidade nos deixou preguiçosos e desesperados. Não apreciamos mais, não esperamos mais, não nos esforçamos mais. Queremos tudo pronto e descartamos o que nos parece difícil demais.

Acho que sou uma lírica também.

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“Esse livro é de comédia?”
“Não”, estranhei.
“Toda hora que olho pra você, você está rindo”

Talvez eu tenha sentido que os músculos do meu rosto estavam contraídos assim, de leve, mas quando alguém de fora desata o último nó da inconsciência, impossível negar: ler O jogo da amarelinha é uma daqueles encontros livro-leitora.

Joyce e Woolf têm fluxos de consciência belos, ricos e cheios de técnica, mas o fluxo de consciência do Cortázar é mais despojado, solto, com o lirismo da latinidade que os outros dois não têm. Talvez por isso o que ele escreve me cause felicidade muscular sem que eu perceba, porque é como se eu pudesse ser aquele fluxo também. Não é apenas um texto que eu admiro e coloco num pedestal — como acontece com frequência no par europeu — é um texto do qual eu me aproprio e experimento como se fosse meu.

Fazer alguma coisa, fazer o bem, fazer xixi, fazer tempo, a ação em todas as suas reviravoltas. Mas por trás de cada ação havia um protesto, porque todo fazer significava um sair de para chegar a, ou mover alguma coisa para que estivesse aqui e não ali, ou entrar naquela casa ao invés de entrar ou não entrar na casa ao lado, quer dizer que em todo ato havia a admissão de uma carência, de algo ainda não feito e que era possível fazer, o protesto tácito diante da contínua evidência da falta, da perda, da pequeneza do presente. Acreditar que a ação podia preencher, ou que a soma das ações podia realmente ser o equivalente a uma vida digna desse nome, era uma ilusão moralista. Melhor renunciar, porque a renúncia à ação era o protesto em si, e não sua máscara.

(Capítulo 3, página 26)

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Essa leitura é uma relação de descoberta e receio, como se eu estivesse adentrando uma área desconhecida — e, de fato, estou. Às vezes me cansou e noutras me encanto, mas sempre como uma surpresa, uma vertigem, uma dor. Ao mesmo tempo que não sei se conseguirei terminar de ler O jogo da amarelinha, me pergunto por que não comecei a leitura antes.

Enfim, a mecânica do desejo em sua forma mais pura.

O romance que nos interessa não é o que vai colocando os personagens em situação, mas o que instala a situação nos personagens.

(Capítulo 115, página 452)

Talvez eu precise aceitar que sou só mais uma pessoa escrevendo no mar de pessoas escrevendo, mas aceitar sem ressalvas. Aceitar ser mais um é o único jeito de continuar — porque a ambição de ser além me trava. Sou só mais uma, e sendo mais uma, enfrentarei o mundo com a minha voz.

Porque diante de um romance como esse, é preciso admitir que se é mais um. Ser mais um é liberdade de pegar tudo o que se ama e brincar de montar.

Erro postular um tempo histórico absoluto: há tempos diferentes embora paralelos.

(Capítulo 116, página 454)

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Essa leitura é como um vício. Ao mesmo tempo que quero continuar, quero parar; que me pergunto se devo continuar, não resisto e continuo. Estou entre o mistério, a raiva e a compreensão desse personagem (Horacio Oliveira), num contínuo concordo-desaprovo. Seu mundo interior é o meu mundo interior, mas suas atitudes no mundo prático não são as minhas atitudes. 

O problema é que a naturalidade e a realidade viram, sem que se saiba por que, inimigas, tem uma hora que o natural soa espantosamente falso, em que a realidade dos vinte anos se acotovela com a realidade dos quarenta e em cada cotovelo há uma gilete retralhando nosso paletó. Descubro novos mundos simultâneos e estranhos uns aos outros, cada vez suspeito mais que estar de acordo é a pior das ilusões. Por que essa sede de ubiquidade, por que essa luta contra o tempo?

(Capítulo 21, página 95)

E ao mesmo tempo que leio a história, aprendo algo sobre sua mecânica — e talvez sobre a mecânica que eu mesma esteja tentando aplicar nas minhas narrativas, sem sucesso — e essas ideias vão se grudando em mim e no que acredito ser possível fazer por uma narrativa, sem que eu consiga executá-las.

Uma narrativa que não seja pretexto para a transmissão de uma ‘mensagem’ (não há mensagem, há mensageiros, e a mensagem é isso, assim como o amor é aquele que ama)

(Capítulo 79, página 370)

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Incômodo na mesma medida de encanto. Cortázar provocativo, encarnado no Oliveira, faz meu estômago revirar a cada salto de capítulo. Ao longo das semanas de leitura (porque, convenhamos, O jogo da amarelinha é um livro para ser vivido com tempo), experimento o esquecer-lembrar, como o lusco-fusco de um vagalume no fundo da memória. Nada fica claro, ao mesmo tempo que tudo está escancarado.

Por que escrevo isto? Não tenho ideias claras, nem sequer tenho ideias. Há fiapos, impulsos, bloqueios, e tudo busca uma forma, então entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não por aquilo que chamam de pensamento e que faz a prosa, literária ou outra.

(Capítulo 82, página 375)

E há esse personagem, Morelli, que Cortázar cria para teorizar os arranjos literários que ele utiliza ao longo do romance. Um personagem que me intriga, porque brinca com o que é real e o que é fictício — por mais que fique claro que Morelli não passa de mais um personagem. 

O jogo da amarelinha, para mim, é o jogo entre o que é real e o que é fictício em diversos níveis — e é essa dúvida que me mantém lendo entre sorrisos e reviradas de estômago.

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Enfim, terminei de ler O jogo da amarelinha. Refleti tanto sobre tantos aspectos da literatura ao longo da leitura que só o fato de ler o livro do início ao fim já valeu a jornada.

O que mais me chamou a atenção foi a capacidade da narrativa de me envolver e me incomodar ao mesmo tempo sem, necessariamente, entregar todas as peças do quebra-cabeça. Não há fechamento, nem conclusão, nem conforto, nem qualquer indício de que a história chegou ao fim — aliás, a narrativa termina em um looping eterno de falas desconexas.

Sem dúvida, a maneira como a narrativa foi construída, colocando os personagens na situação ao invés de mostrar a situação em que eles estão, me fez pensar sobre outras formas de narrar.

Todos nós gostaríamos de chegar ao reino milenar, uma espécie de Arcádia onde talvez fôssemos muito mais infelizes do que aqui, porque não se trata de felicidade, doppelgänger, mas lá não haveria esse imundo jogo de substituições que nos ocupa cinquenta ou sessenta anos, e onde nos déssemos as mãos de verdade em vez de repetir o gesto do medo e querer saber se o outro tem uma faca escondida entre os dedos.

(Capítulo 56, página 320)

Ao mesmo tempo, o personagem principal, Oliveira, me provocou um misto de incômodo e identificação. Mesmo ele sendo pedante, chato e machista, me envolvi com seus conflitos sem que me desse conta — como numa relação de amor e ódio com uma pessoa real. A tridimensionalidade do personagem é espetacular.

Quando encontro livros assim, que confrontam as certezas que eu tinha e me fazem refletir sobre novas possibilidades, me sinto muito afortunada. O jogo da amarelinha é um dos milhares de livros que podem me fazer repensar sobre qualquer assunto e isso é maravilhoso. 

Viver em um mundo cheio de livros para encontrar, apesar de tudo, é maravilhoso.

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A edição de O jogo da amarelinha da Companhia das Letras traz vários trechos de cartas escritas por Cortázar, com comentários sobre o processo de produção, edição e publicação do livro.

Acredito que quem selecionou os trechos tinha a intenção de colocar o leitor em contato com a mente do autor. Se era essa a intenção, saibam que funcionou comigo.

Veja, Paco, para mim não é tão importante que você tenha achado o livro bom — ainda que isso tenha uma enorme importância para mim, sem dúvida —; o que realmente conta é que você tenha ficado tão desconcertado, tão “remexido” (…). O que no fundo eu mais gostei é que você teve vontade de atirar o livro na minha cabeça.

(Página 545, trecho de uma carta de Cortázar à Paco Porrúa)

A relação de amor e ódio que os leitores têm com o livro é citada várias vezes por Cortázar e é tida pelo escritor como a concretização de um objetivo — e isso é maravilhoso, porque funcionou comigo!

Chegar ao final da leitura e ver que fiz parte da comunicação escritor-leitora, que fui envolvida nas nuances da trama, do lirismo ao ódio, só afirma o meu amor pela literatura. 

Talvez as impressões que fui escrevendo ao longo da leitura sejam mais uma carta ao Cortázar. Uma carta cheia de esperança. Uma carta para dizer que, enquanto estivermos dispostos a participar do ciclo de escrita e leitura, teremos uma infinidade de mundos disponíveis para explorar, dividir e transpor.


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