um começo clichê:
cada um de nós, nos mais diversos níveis, teve a Vida rearranjada a partir de março de 2020. e cada um de nós se adaptou
mais ou menos
como deu. muitas daquelas rotinazinhas estruturadas, que a gente seguia de olhos fechados, bem
desmoronaram
e agora a gente tá voltando, voltando meio daquele jeito, meio com medo, meio com preguiça (exagero meu, será?) e então aparece um convite pra algo que a gente fazia sempre e a gente
será?
(e é nessas horas que penso que eu tive a chance de poder voltar só agora)
e a gente não consegue recusar o convite porque é um daqueles Rituais que acompanham a gente por anos e que no meu caso são as
Feiras ou
Festivais Japoneses ou
Matsuris.
desde 2004 participando deles, todo ano, mais de uma vez por ano, encontrando aquelas pessoas que a gente só encontra lá, e o troço já faz meio que parte do sangue mesmo que o sangue (antes que se pergunte) não tenha nada de japonês. podia resumir dizendo que
eu fui e me banhei na sensação de estar lá
mas isso não seria uma Cisma, só seria uma confissão. pra ser uma Cisma tem que ter algo além do pavilhão do parque barigui lotado, tão lotado que no domingo pararam de cobrar ingresso, deixaram uma penca de gente entrar e fecharam as portas, porque o lugar atingiu Lotação Máxima. era mar de gente passando pelos corredores matando a sede de encontro, se atirando nas comidas e nas lojinhas e gastando tanto que até livro vendeu bem. mas a gente só pôde viver isso porque a gente
ainda tá vivo.
todo matsuri, eu e uma amiga (a que tem um elefante branco na sala) temos um ritual: a gente dança bon odori juntas. a gente para de comer ou de conversar ou de vender pra ir dançar. a gente entra na fila de pessoas e vai dançando em círculos aqueles passos repetitivos guiados pelas batidas intensas do taikô e da letra em looping. as senhorinhas sempre vão na frente, puxando a fila e ensinando os passos. o bon odori é uma dança que a gente dança em grupo para
homenagear os mortos.
teve gente que não tava mais lá.
gente que participava desse ritual há bem mais tempo que eu.
uma dessas pessoas era a mãe de um amigo meu, que sempre canta os bon odori.
pow tac pow
tsuki gaaaa detta dettaaaa
pow tac
a voz dele grudou nos meus ouvidos AMPLIFICADA por aquelas caixas maiores que eu
tsuki gaaaaa dettaaaaaa na yoi yoi
tac tac pow
e a dança em círculo
pow pow
e as batidas do tambor vibrando no peito
pow pow POW
e os movimentos repetitivos que obrigam a gente a ser uma coisa só me lançaram num
transe
POW
anos dançando aquilo pra enfim acessar a ancestralidade e descompreender aqueles passos que eu racionalizava tanto pra enfim
dançá-los
tive que me segurar pra não fugir inteira do corpo (acho que é por isso que os movimentos são repetitivos) e não começar a Chorar ali mesmo, porque afinal eu tava
celebrando
não tava?
já chorei de celebração, mas naquela hora eu queria era Chorar de tristeza mesmo.
uma tristeza sentida. despersonificada.
naquela dança em roda que a gente repete os movimentos e a batida se repete dentro da gente e a voz chamando a gente pra estar ali em corpo enquanto
a gente desmoronou tanto nesses dois anos que não basta reestruturar as rotinazinhas pra tudo voltar a ser como era
antes
(cada um escolhe o seu).
rituais são Pontos Fixos, mas até pontos fixos têm seus Pontos de Virada
a gente volta, mas tem coisas que não voltam com a gente, assim como tem coisas novas que nos chegam mas a gente segue
repetindo
e Celebra. porque a gente precisa Celebrar e retornar aos rituais pra Absorver essas novas doses de Vida. pra ter
pontos de Retorno
é um conforto poder voltar a um lugar simbólico e partilhar um momento simbólico com uma família simbólica de um monte de gente que se desconhece.
acho que isso explica muita coisa.
P.S.: alguém leu
Aline Bei e pensou
como nunca pensei em explorar o ritmo de um texto em prosa? e começou a cismar.