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Ser escritora: uma profissão de fé

Em maior ou menor grau, cada um de nós tem fé em alguma coisa — e a minha fé eu deposito na escrita. Para alguns pode ser simplista, bobo e nada prático, mas é o que há de mais verdadeiro em mim: só escrevo porque acordo, durmo (e às vezes sonho) acreditando no ofício que quis chamar de meu.

Assim, minha profissão de fé é mais parecida com a de Olavo Bilac do que com a de qualquer religião — até porque sou agnóstica. Como toda fé, em certas épocas duvidei dela, a desafiei e até a neguei, mas, lá no fundo, a crença na escrita se manteve intacta em mim por toda a vida.

Acontece que a situação muda um pouco quando preciso afirmar essa crença ao mundo.

Na última semana, troquei várias mensagens sobre escrita com a Evelyn Cieszynski. Em um determinado momento, ela me perguntou: quando perguntam sua profissão, seja informalmente ou pra algum banco de dados, você responde escritora? 

Eis uma pergunta fácil e difícil de responder, que se desmembra em outros questionamentos. Por isso, ao invés de respondê-la de forma simplista, vou dividi-la em tópicos, tentando acompanhar os desdobramentos que se seguiram na nossa conversa.

Quem define os escritores?

(Resposta curta: você)

Na sociedade tecnicista em que estamos vivendo, papéis impressos por instituições dizem mais do que habilidades ou autodeclarações. Ter um diploma dizendo que você é alguma coisa — um advogado, um dentista ou mesmo um jornalista — tem mais validade aos olhos do mundo do que sair dizendo que você é um autodidata, que aprendeu um ofício por esforço próprio ou com a ajuda de um mestre fora de uma instituição de ensino.

Por isso, de saída, fica muito difícil se declarar “escritor” fora ou mesmo dentro dos círculos literários e artísticos. Precisamos de algum tipo de validação, de algo ou alguém que comprove que o que estamos dizendo é verdade.

Ao mesmo tempo que qualquer um pode se autoproclamar escritor, ser escritor é para poucos — não é exatamente assim que pensamos?

Jornalistas, compositores, produtores de conteúdo para internet, roteiristas, dramaturgos, redatores de manual de instruções, de bula de remédio, de cartas de amor, poetas, professores, advogados — não são todos, de alguma forma, escritores? Não estão todos, nas suas funções, trabalhando com a palavra?

O que há então na afirmação “sou escritor” que nos dá tanto receio? Será apenas a falta de um papel que comprove aquilo que estamos dizendo?

Do lado de cá, já usei várias máscaras: artesã, produtora cultural, roteirista, professora… Apesar de não estarem no panteão das profissões de prestígio, essas máscaras são socialmente mais aceitáveis do que “ser escritora”.

Até porque escritor que não publica não é considerado escritor.

Publicar um livro faz de alguém um escritor?

(Resposta curta: sim e não)

Na falta de diplomas ou outros papéis com assinaturas oficiais e carimbos bonitos, publicar seus escritos em espaços considerados oficiais — leia-se livros — é a melhor forma de comprovar que você escreve para além da sua gaveta ou da sua nuvem.

Publicar é como um batismo nas águas da literatura, é a comprovação de que você chegou no rolê e está fazendo barulho. É aquilo que vai engordar o seu currículo artístico quando você precisar de um (se você quer participar de editais culturais, você certamente vai precisar de um). 

Se você já publicou um conto, crônica ou poema em uma coletânea, aos olhos de muita gente você é mais escritor do que quem tem milhares de textos em um blog ou numa rede social.

Sim, a comparação é injusta — mas ela é real. Ter um blog ou um perfil numa rede social (por maior e mais bem trabalhado que seja) não é igual ao trabalho concretizado de uma publicação — mesmo que essa publicação seja digital. 

Você pode argumentar sobre a qualidade do livro, se houve ou não alguém fazendo o papel de editor, se a pessoa pagou para ter aquele livro publicado ou mesmo se alguém leu o tal livro — e nada disso importa. O mundo da escrita é dividido entre “pessoas que publicam seus textos em livros” e “pessoas que ficam sonhando em publicar seus textos em livros”. É simples.

Sempre digo e volto a repetir: para o escritor, o livro é como o objeto mágico de uma fábula. Publicar um livro é o ápice da autoafirmação de “sou escritor”; é a prova material — no caso do livro impresso — que você pode entregar ao mundo sempre que te perguntarem se o que você faz é real. No fundo, publicar um livro te dá o poder de continuar se afirmando escritor.

Mas o livro não é a solução; ele é apenas a chave para uma porta. Luciano Huck publicou um livro, isso faz dele — esqueçamos o ghostwriting por um momento — um escritor?

Se qualquer um pode se autoproclamar escritor e publicar um livro, a pergunta verdadeira não é “o que define um escritor?” mas sim “que tipo de escritor você quer ser?”. 

O escritor é um inútil para a sociedade?

(Resposta curta: na sociedade capitalista, sim)

Você pode estar muito bem com você mesmo, dizendo que é escritor e trabalhando nos seus projetos e, mesmo assim, não conseguir afirmar em um formulário de internet que sua profissão é “escritor”. Isso porque os conceitos comuns de profissão e trabalho envolvem remuneração, salário, dinheiro — e, sejamos francos, ganhar algum dinheiro escrevendo não é uma matemática exata.

Assim, por mais que consigamos nos resolver, o sistema não se resolve para nós. Mais uma vez, estamos viciados em recompensas — e o sistema capitalista nada mais é do que um tipo de sistema de recompensas no qual é atribuído algum valor — dessa história bem contada que chamamos de dinheiro — que nos dá o direito de conseguir o que quisermos dentro dos limites das cifras. 

E ainda há mais um incômodo: o conceito comum de trabalho está ligado a movimento e interação com outras pessoas — duas atividades que os escritores fazem menos do que outros profissionais. Ficar sentado, sozinho em um cômodo, por horas, pensando consigo mesmo e escrevendo está mais próximo aos conceitos de depressão e inutilidade.

Se não é comum, não é prático e não paga as contas, então é inútil mesmo, porque não soma à sociedade. A gente pode defender o quanto quiser a escrita, ter a maior fé do mundo nela, mas não pode mudar, do dia para a noite, o pensamento corrente. Pais, familiares, donos de imobiliárias e gerentes de banco vão te olhar torto quando você disser “sou escritor” — mas é aí que você não pode esmorecer.

É aí que você precisa ter bastante clareza e foco no escritor que quer ser.

Como nos afirmar escritores?

(Resposta curta: estudando, testando e quebrando a cara)

Como já mencionei, muitos profissionais de outras áreas podem publicar livros e se declararem “escritores” — desde jornalistas até apresentadores de programas dominicais. Por isso, é preciso ir além da autodeclaração: é aqui que os caminhos se ramificam.

É sabido que para uma árvore se fortalecer, é preciso podar seus galhos periodicamente. Por mais que a escrita ofereça inúmeros caminhos e às vezes seja tentador seguir por vários deles, precisamos decidir que tipo de escritores queremos ser. Em outras palavras, precisamos definir qual é o nosso objetivo de longo prazo na caminhada da escrita.

Independente se a sua escrita vai gerar algum dinheiro ou não, é importante definir qual é o lugar da escrita na sua vida. Escrever, em primeira instância, é um compromisso mais com você mesmo do que com o resto do mundo — e refletir de antemão sobre o seu comprometimento pode evitar frustrações.

Entre as diversas opções (que podem variar ao longo do tempo, é claro) estão apostar ou não em concursos e prêmios, reunir uma base de leitores, os gêneros literários pelos quais você quer ser reconhecido etc.

Definido o objetivo, é preciso entender que publicar um livro ou tocar projetos online são objetivos de curto prazo. Por mais que sejam projetos de anos, numa carreira de escrita muitas vezes períodos de cinco ou dez anos são breves, porque o tempo da escrita é outro. Escrever não exige apenas o comprometimento em si, mas também muito estudo, uma boa dose de empirismo e autoconhecimento.

A depender do escritor, dez anos pode ser o período de escrita de um livro ou de dez; de estudo aprofundado de um gênero literário ou de testar a receptividade dos leitores em diferentes gêneros. O próprio Haruki Murakami, no livro Romancista como vocação, conta que conheceu várias pessoas que escreveram, num período de dez anos, um ou dois romances, obtiveram relativo sucesso em suas publicações, mas desistiram. Parafraseando a metáfora dele, escrever é como participar de maratonas

Assim, a única maneira de sobreviver se afirmando escritor é ter plena consciência do seu objetivo. Você pode ajustar o caminho o quanto quiser, pode mudar de ideia sempre que precisar, mas a essência do que você quer permanece — e é essa essência que você deve perseguir.

Fé na profissão

Em resumo: para ser escritor basta se autoproclamar, publicar um livro é como obter uma chave, a sociedade vai te olhar como um inútil e escrever é como participar de uma maratona.

Então, de que serve o esforço, o tempo investido, o fosfato queimado? Para nada e para tudo — só depende do que você considera um valor.

Se você é uma pessoa utilitarista e precisa atribuir uma aplicação prática para tudo o que está fazendo, apenas escrever não fará sentido. Então, talvez o melhor caminho para você seja escrever textos e livros de não-ficção, que ajudem ou ensinem os leitores de alguma forma.

Agora, se você é uma pessoa que gosta de embarcar nos mistérios das relações humanas e só quer ver o que acontece ao seu redor se você começar a escrever e publicar, então escrever poemas e ficções será uma aventura pessoal. Sem a necessidade de dar uma explicação ao que está produzindo e nem atribuir um valor imediato ao que for publicado, você se sentirá livre para investir o tempo que for necessário escrevendo, publicando e vendo o que acontece. 


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