Costumo ser o último a dormir. Só depois que todas as pessoas do recinto se entregam ao descanso é que eu apago a luz e me recolho. Soube recentemente que eu tenho o que especialistas definem como sono curto natural, ou seja, durmo poucas horas e não fico cansado no dia seguinte. A boa notícia é que essa característica genética me torna mais adaptável e menos propenso a desenvolver Alzheimer; a notícia ruim é que me aproxima de pessoas como Donald Trump e Elon Musk — e não por causa das contas bancárias. Dormir pouco e não sentir-se mal no dia seguinte aparentemente beneficia capitalistas tardios e colunistas ansiosos.
Haveria sono curto natural entre os antigos romanos, os maias ou os visigodos? Descobri que o sono, como quase tudo, também é uma conjunção sócio-histórica. Há milênios, as comunidades de caçadores-coletores iam para a cama (no caso, qualquer coisa que se assemelhasse a um ninho) tão logo o sol se punha, e retornavam à ativa nos primeiros raios da manhã seguinte. Em suma, seus sonos eram guiados pela luminosidade natural, o que os permitia ter as horas de descanso prolongadas.
Nas primeiras sociedades, era comum o uso do sono como meio para sarar o corpo ou a mente. A prática da incubação — que vislumbrava propriedades curativas ao dormir em um local sagrado — foi regularmente registrada em povos e culturas distintos, sempre como uma forma de ter acesso, pela via dos sonhos, à cura para aquele que dormia. O sono era oportunidade para obter respostas a dilemas existenciais ou reparar males físicos.
Sabe-se que o período de descanso era dividido em duas partes, desde a Antiguidade até o final do século XIX, quando povos de várias partes do globo dormiam um primeiro sono (que costumava ir até a meia-noite), depois ficavam acordados (e produtivos) por cerca de duas horas, até retornarem para a cama e dormirem até o amanhecer. Essa prática, denominada sono bifásico, foi identificada inclusive no Brasil, entre os tupinambás, e parece ter sido comum durante a maior parte da história humana. Ou seja: aquela insônia recorrente e que acaba com o seu dia seguinte pode ser apenas um vestígio insistente da evolução.
O que você faz da meia-noite às seis?
O sono contemporâneo foi moldado pela iluminação artificial em larga escala e pelo aumento da jornada de trabalho. As primeiras décadas do século XX viram surgir a primeira pílula para dormir, em uma clara resposta ao sinal dos tempos — e, com ela, os efeitos colaterais desastrosos da dependência aos fármacos hipnóticos. Acrescente, na virada do século, o aumento da exposição às luzes azuis das telas e a constante cobrança por produtividade. Pronto: está criada uma sociedade global que relega o sono a um papel marginal.
996. Trabalhar doze horas por dia (das 9h às 21h), durante seis dias por semana. É essa a tendência proposta pelo bilionário chinês Jack Ma, dono da Alibaba. Para além das evidentes críticas ao modelo, o que sobressai é a quantidade de apoiadores e entusiastas da prática, tida como essencial para manter elevados os níveis de crescimento econômico e vivos os sonhos de milhões de trabalhadores ávidos a se destacar no ambiente corporativo. Afinal, o que você faz da meia-noite às seis? Ora bolas, dizem eles, sabia que é possível aprender dormindo? Há várias pesquisas a respeito, e com o estimulo certo e técnicas simples você pode aperfeiçoar seu inglês ou resolver álgebra, ou zzzzzzzzzzzzzzz
O sono, afinal, parece ser a moeda de troca dos novos tempos em que cada vez mais nos falta… tempo. A pessoa que trabalha e estuda, por exemplo, e que ocupa manhã, tarde e (muitas vezes) noite em compromissos, estende cada vez mais a fronteira da vigília. A organização social contemporânea também não colabora para essa realidade: adolescentes e jovens dormem cada vez mais tarde, dispersos em meio ao mar de estímulos. Já consigo especular entrevistas de emprego no futuro em que, tanto ou mais do que o salário, estará em discussão o tempo disponível para o descanso do contratado. Fulana de tal, bilíngue, phD, notívaga e dormidora curta… Desempenha melhor na madrugada. Interessados, tratar após o horário comercial.
E se você não é muito impressionável, espere até saber de anunciantes (como a Burguer King) que investem milhões para financiar pesquisas sobre a “incubação de sonhos direcionada”. Como a premissa do filme A Origem (Inception), de Cristopher Nolan, seria possível inserir ou extrair informações no inconsciente das pessoas enquanto elas dormem? Na teoria, a ideia é sugerir e plantar estímulos que funcionem como “indutores de sonhos”. No futuro, a publicidade nos alcançará mesmo quando dormirmos.
Sim, isso é um pesadelo — ainda mais se levarmos em consideração a quantidade de dispositivos vestíveis (os wearables) que usamos com a finalidade de gerenciar o sono. No Brasil, mais de 55% da população utilizam tais gadgets. Essa quantidade de dados tão pessoais, para além de ajudar cada usuário a monitorar a qualidade de seu sono, também serve de banco de dados para empresas de tecnologia interessadas em extrapolar as fronteiras da vigília. Se em épocas remotas o repouso já foi visto como curativo e sagrado, atualmente é encarado por muitos como oportunidade perfeita para influenciar inconscientes, não mais no intuito de desvendar mistérios da alma, mas para lhe fazer pedir um suculento e gorduroso hambúrguer assim que acordar.