104 semanas atrás, vivíamos, há mais de um ano, em isolamento por causa da pandemia. Ainda sem vacinas, restringíamos nossos contatos sociais ao círculo familiar, não saíamos de casa sem máscara e limpávamos cada uma das embalagens que passava pelas nossas portas. Não íamos a mercados e só conversávamos mediados por câmeras. Dormíamos e acordávamos nos mesmos ambientes, ficando neles por dias seguidos. Pausamos para sobreviver.
Foi nesse contexto que o Lambrequim nasceu. A edição #01, gestada por mais de um mês, foi enviada no dia 14 de abril de 2021.
Como já adiantei na edição #100, para mim e para o Menin tem sido uma honra e um privilégio poder construir, semana após semana, esse espaço que mistura pensamento crítico com entretenimento, arte com tecnologia — sempre contando com a companhia de leitoras e leitores incríveis que recebem nossos experimentos em suas caixas de e-mail.
Além de ser um exercício de comunicação e disciplina, manter o Lambrequim me fez (finalmente!) compreender as limitações que as redes sociais representavam no meu trabalho com a escrita.
O mergulho, a conexão
Sou uma pessoa tímida na mesma intensidade que sou uma pessoa em busca de conexões profundas. A timidez faz com que eu me coloque em defesa e a busca por conexão faz com que eu me abra, criando desajeitados conflitos internos.
Digo isso porque essa é uma espécie de clichê para quem escreve: o desejo de dizer versus a vergonha de abrir a boca.
A escrita é um lugar seguro para se expressar, e a internet também parecia um lugar seguro para existir. Lembro-me das alegrias de navegar pela web e fazer sites nos anos 90, de como aquilo libertava meu desejo adolescente intenso por mostrar o que eu era capaz de escrever.
As redes sociais também eram lindas. O orkut, o facebook, os blogs. Não havia produção de conteúdo nem marketing, a gente só postava o que escrevia e encontrava leitores. Os comentários e as relações nesses espaços eram mais autênticas. Fui vivendo assim até 2017, até que algo se quebrou.
Mesmo soando saudosista, o fato é que, apesar da evolução da internet ter acontecido em pouco mais de 20 anos, também não foi de um dia para o outro. Em algum momento, quando a internet acontecia para o grande público para além das redes sociais, a relação com o ciberespaço era diferente — e, consequentemente, as relações interpessoais também.
Sem mergulho nas redes rasas
Digam o que quiserem sobre grupos que se concentram em perfis de instagram ou tiktok, com muitos corações voando, elogios e emoticons de chorinho, mas o fato é que as redes sociais são espaços rasos.
Podemos pontuar a velocidade, a quantidade de informações, a variedade de ações possíveis para se executar, as diferentes mídias que consumimos quando estamos nelas e até os momentos em que decidimos entrar nas redes sociais para justificar o seu descolamento com a profundidade.
Para além dessas explicações, o que pega mesmo para nós, pessoas que escrevem, é o fato de que as redes sociais não passam de vitrines, de panfletos virtuais onde só cabem amostras dos nossos trabalhos. Por isso, esses espaços não satisfazem o nosso desejo genuíno de nos comunicar e nos conectar com o mundo através da escrita.
Com profundidade, me refiro a mergulhos de concentração, impossíveis nas redes sociais. Independente se o seu livro for um romance leve de entretenimento ou um tratado filosófico, nenhum dos dois pode ser absorvido em profundidade no mero passar da timeline.
Precisamos ir a outro lugar (dentro e fora de nós) para ler de verdade.
Sem conexão nas redes impessoais
Comecei falando sobre a pandemia, o que me fez pensar em como nossas relações sociais foram (re)moldadas ao longo dos meses de isolamento social. Por aqui, tive contatos profundos, via videoconferência, com pessoas que ainda não (re)vi no mundo real — em especial, pessoas que estão na mesma cidade que eu.
Em situações assim, de fragilidade emocional (como foi a pandemia), fica fácil cair nas graças dos comentários, curtidas e mensagens recebidas (ou não recebidas) nas redes sociais. Passa-se a usar as redes como medidores de popularidade, de importância adquirida diante dos outros — ainda mais se o objetivo for de divulgar algum tipo de trabalho, como o artístico.
Vive-se, assim, em extremos. Seja amor ou ódio, em excesso ou escassez, tudo incomoda no resultado obtido pós-postagem. Insatisfação eterna, não por exata culpa das redes (mesmo que elas tenham inúmeros defeitos) mas porque o que buscamos está, de fato, fora delas.
Essa troca preterida está numa pessoalidade que nem os comentários de felicidade fabricada, nem os de ódio vomitado são capazes de entregar. Se estamos todos fingindo em sociedade, fingimos ainda mais e com propriedade nas redes, temerosos de que sejamos deixados para trás em timelines alheias. Ou pior, recebamos tanta atenção que uma massa feroz venha nos cancelar.
Sentar e começar
O que mais me incentiva a seguir em frente com o Lambrequim é como este espaço me estimula a testar coisas novas — num sentimento análogo ao experimentado nos anos de internet pré-redes sociais.
Mesmo tendo experimentado a dinâmica de escrever e deixar fluir para depois ver o resultado, nunca tinha feito disso uma fonte verdadeira de textos publicáveis, até começar esse semanário (não à toa) incidental.
Na sessão Cismas, que nasceu na edição #13, escrevi de tudo um pouco, usando o espaço tanto para experimentações quanto para partilhar algumas das aflições mais profundas que me atravessaram nesses dois anos.
Mas foi desse desejo de comunicar em profundidade que aprendi a dosar a escrita espontânea com a troca, provocando efeitos inesperados, que dificilmente viriam em textos planejados.
Como recompensa, hoje carrego a certeza de que apenas a escrita constante em um determinado estilo (ou gênero textual, se preferir) nos leva até a nossa voz literária. Hoje, para além das experimentações e dos planejamentos, consigo conduzir-me ao mesmo espaço mental sempre que preciso cismar — e então basta ter um tema e começar a escrever.
O que fica, o que muda
Nessas 104 semanas de Lambrequim, mais tecnologias que nos afastam do pensamento crítico, do aprofundamento e da concentração ganharam força — como o TikTok e o ChatGPT. A sociedade pós-pandêmica está mais acelerada e viciada nos seus celulares, atolada de eventos e correndo de um lado para o outro para fechar as contas.
A grande questão é que, apesar de ter passado por um processo que me fez compreender que as redes sociais não podem me entregar aquilo que espero, não posso ignorar a influência que elas têm na sociedade. Não é apenas a questão “ruim com elas, pior sem elas”, mas sim de observar que os comportamentos sociais hoje estão intimamente ligados a elas.
Por isso, a questão não é de ignorar, nem de conviver com as redes, mas de criar espaços de oposição. Se existem espaços hegemônicos de aceleração, de leituras rasas e de hipercomunicação, é preciso criar cada vez mais espaços de desaceleração, de mergulhos e de comunicação leve.
O Lambrequim, no final das contas, é isso: nascido como uma resposta ao nosso incômodo com as redes sociais, hoje é um espaço de oposição, de encontros semanais, de trocas profundas. Em um mundo em que tudo é valorado pelo capital, essa newsletter é uma inutilidade imensa, construída palavra após palavra ao longo de 104 semanas, sem data prevista para terminar.